CQD

Diante de números e fórmulas matemáticas, o futuro escritor dava voltas e mais voltas sempre acreditando nas muitas possibilidades da palavra escrita
Ilustração: FP Rodrigues
07/07/2025

Uma das primeiras imagens guardadas dos bancos da escola traz uma espécie de banner pendurado em um prego no centro da lousa. Nela, momento bucólico, um menino pescando às margens do riacho. Dia bonito de sol, chamava a atenção uma casinha simples, branca, no alto do aclive que era o terreno que desembocava onde estava a criança. Camisa encardida, bermuda cinza com suspensórios, pés descalços, um deles dentro da água clara. Do lado uma galinha ruiva ciscando. Lembro-me ainda hoje dos detalhes da figura. A professora nos ensinava o que era um texto descritivo. Deveríamos olhar bem a cena e registrá-la o melhor possível, fixar o máximo no papel. Nosso olhar precisaria funcionar como câmera fotográfica. As minúcias, era um pedido da mestra, seriam obrigatórias no texto. Vi até uma folhinha suspensa. Imaginei conduzida pelo vento. Mas me contive. A recomendação mais enfática de dona Lurdes fazia referência à economia de fantasia. Não deveríamos voar muito alto, apenas ver e contar o que víamos. E como escrever era a minha praia, adorei o exercício. Embora tenha tido alguma dificuldade. Foi preciso tentar interromper o desejo quase obsessivo de falar a respeito do jovem pescador. Havia uma história por traz daquilo tudo. Depois de situar o espaço, falar dele com as sutilezas recomendadas, eu precisava continuar. Provavelmente aquele pequeno ali largado, folgazão, havia escapado da aula no colégio. Tamanha displicência naquela manhã de segunda-feira revelava tendências à vadiagem. Óbvio! Ele cabulava aulas. Não resisti. Minha lição acrescentou à narrativa a carga ficcional indesejada.

— Não se esqueçam, pimpolhos queridos, é apenas descrição!

Tudo aquilo visto por mim sem estar na tela foi riscado em vermelho pela professora.

Para mim era cabuloso abandonar o sonho. Até mesmo na matemática, a cruz erguida permanentemente em meu caminho, eu inseria algumas gotas de imaginação. Minhas demonstrações de teoremas, hoje eu calculo com certo bom humor, deviam ser bem divertidas. Eu começava com uma hipótese geralmente bem-elaborada, a facilidade em escrever sempre me ajudava, nela as condições iniciais apareciam demarcadas com correção, até por serem fornecidas como premissas. Eu apenas dava a ela, a dita hipótese, uma aparência mais rebuscada, considerava minha obrigação deixar o texto claro e fluido. Passava então, com igual rigor sintático, para a tese. Explicava em seguida, bem direitinho, o que pretendia demonstrar. Os números e fórmulas eram circunstanciais. Nunca os levei muito em consideração. Gastava bem uns dois parágrafos falando sobre o que iria fazer. Era meu momento mais criativo. Porque dificilmente possuía alguma ideia do que faria. Mas disfarçava bem. Minhas teses sempre foram bastante bem-escritas, degrau em que o matemático-futuro-escritor deixava claro a que vinha. E então, momento de glória, vinha a demonstração. Aí, já meio cansado, eu começava a ansiar pelo gran finale. Precisava me segurar para não queimar etapas, escrever logo as três queridas letrinhas. Acrescentava uns dois ou três solilóquios e tinha, por ingênuo que era, a mais absoluta certeza de conseguir enganar o professor. Lia e relia as três etapas, com a vaga impressão de estar saindo de um ponto para chegar em ponto algum, e pronto. Punha logo o CQD: “Conforme Quis Demonstrar”. Para ver o professor Ivo, ser humano implicante, responder em letras garrafais na prova, avermelhando tudo:

— Querias!

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho