Conversa para cavalo dormir

Um flâneur perdido encontra um cavalo em terreno baldio e, ao conversar com ele, descobre o inusitado e reencontra o caminho
Ilustração: FP Rodrigues
18/08/2025

Quem me conhece e lê minhas crônicas sabe que sou um andarilho. Tenho por hábito circular pelas ruas do bairro, muitas vezes sem destino, apenas pelo prazer de observar o entorno. Já me chamaram de flâneur. Na primeira vez que ouvi o termo, fiquei desconfiado. Ignorante, sem nunca ter tido na vida sequer uma horinha de aula de francês, talvez pela sonoridade da palavra, considerei ser alguma coisa ligada a flanela. Assumi, desconfiado, acusarem-me de usar tais vestimentas felpudas de algodão, trajes para mim mais adequados aos idosos. Embora acumule já certa idade, seria injusto. Ainda durmo de cueca e camiseta. Hoje, de posse do significado real da palavra, acho até chique me chamarem assim. Sou mesmo um errante urbano, gosto de explorar a cidade onde vivo.

Outro dia, acabei distraído com as bobagens do pensamento. Engato invariavelmente disparates imaginados, um no outro, e viajo longe em desvarios quando dou meus passos pela vizinhança. Aterrizei em lugar diferente, estranho até então. Fosse daqueles que dão fácil o braço a torcer, reconheceria sem maiores preâmbulos: estava perdido, sem a menor noção de meu paradeiro. Com tempo para gastar e certeza de acabar me localizando, resolvi observar as paragens para onde o acaso me conduzira. Prédios elegantes, árvores frondosas — embora implique com o adjetivo — e passarinhos em quantidade. Folhas no chão sombreado. Percorri o caminho, curioso: São Paulo reserva surpresas para os olhares atentos.

Um pouco mais adiante havia uma interrupção no ajuntamento de construções. Como se faltasse um dente na dentadura da rua. Aproximei-me. Terreno baldio. Um muro baixo permitia a contemplação. Grande, quadrado, deveria valer verdadeira fortuna. No centro dele, com ares de proprietário, um cavalo. Pastando. O gramado crescia ao seu redor, farto; o animal podia banquetear-se à vontade. Apoiei-me na mureta. Fiquei por ali imóvel, como se um gesto meu pudesse afugentar aquela visão fantástica.

Não sou especialista em equinos. Vi poucos em minha vida, a maior parte em filmes, seriados ou livros. Conheço o corcel branco do Zorro:

— Aioooô, Silver!

— Avante, Escoteiro! — o indígena Tonto galopando seu malhado junto ao companheiro.

Havia a Minha amiga Flicka, a égua negra Fury e seu amigo órfão Joey, no rancho Broken Wheel. Acompanhei Rocinante e seu perturbado dono. Tudo isso antes de o cavalo Caramelo ir parar em um telhado durante as enchentes gaúchas recentes. Só.

Encantado com a visão, intimamente estabeleci conversação com aquele estranho proprietário daquela gleba, quase do tamanho de um campo de futebol, aparentemente alheio à especulação imobiliária.

— O que faz por aqui, meu amigo?

Imaginei estar ele aposentado, passando seu derradeiro tempo engordando, quieto, sem haver ninguém por ali a aborrecê-lo. Não mais celas, bridões, esporas, chicotes. Apenas o doce fazer nada.

— Quem colocou você aí dentro, meu amigo?

Não vi portão, entrada, caminho escondido, qualquer passagem para aquele céu dos cavalos no meio da cidade. Olhou-me, mastigando um bocado de verde com ar de enfado.

— Como vai a vida, querido?

Veio chegando mais perto, parecia até ouvir meus pensamentos. Em pouco tempo pude sentir seu hálito morno próximo ao meu rosto. O alimento ruminado recendia a relva recém-cortada. Agradável de sentir.

E então, imóvel, cabisbaixo, fechou os olhos e dormiu.

Minha conversa surda certamente o entediara. Fiquei mais um pouco por ali, intrigado, sem saber de onde aquele bicho havia saído ou entrado.

E então retomei os passos. Segui por aquela rua inusitada. Virei à direita na próxima esquina. Lá na frente, umas cinco quadras adiante, pude ver a padaria. Achei-me!

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho