Chitãozinho

Um passeio por uma São Paulo com jeitão meio interiorano, o encontro com um sujeito cantante e uma tristeza danada no peito
Ilustração: Joana Velozo
19/08/2024

São Paulo tem bairros residenciais. Viver neles, muitas vezes, é ter a sensação de morar no interior, há certo jeitão provinciano de cidade pequena em algumas calçadas. Circulando pelas ruas encontramos gente conhecida, nos cumprimentamos, a camaradagem afasta um pouco a violência da metrópole. Na padaria, e gosto de comer o pãozinho francês com manteiga quentinho e crocante todos os dias, meu café da manhã é assim, a gente brinca, perturba a vida de quem torce para times que perderam, mergulho em intimidade cotidiana gostosa.

— O de sempre?

Não sou de variar muito. Alex, o atendente, pergunta por perguntar. Quando me vê já começa a preparar a média bem quente e clarinha.

Depois vou caminhar no parque vizinho. A gente aprendeu que precisa cuidar da saúde, manter-se ativo, garantir maior longevidade. Tudo para sermos velhos saudáveis, afastarmos doenças comuns ao sedentarismo, encontrarmos a Indesejada em boa forma. Só não nos ensinaram a não ter medo dela.

— Beba bastante água!

O conselho é sempre ouvido por todos, a boa hidratação faz parte do pacote. Mas como sou do tipo renitente, mando às favas a recomendação. Esse negócio de andar com garrafinhas para baixo e para cima não me pega. Preciso ter sede. Não vou me enxarcar por dentro porque alguém cismou que deve ser assim.

Caminhando entre árvores e pássaros sinto algum conforto, prazer. Gostoso respirar o ar verde, reconhecer aqueles que têm horários parecidos com o meu. Entre eles o Chitãozinho. Não o inhambu-chitão, pássaro comum em nossas matas. Refiro-me a um senhor já famoso nas redondezas. Costumava usar a cabeleira branca em um corte comprido, caindo nas costas, curto na frente, muito semelhante ao do cantor da dupla sertaneja. Ficou por isso Chitãozinho, mesmo tendo recentemente aparado a juba. Baixinho, magro, mais de oitenta, segue sempre com sua bengala de madeira, segurando a manopla em forma de gancho. Vai em frente apoiando-se muito pouco nela, quase um ornamento. Vez ou outra a segura como se fosse uma guitarra, e canta alguma coisa, dedilhando o instrumento improvisado, dançando, erguendo os ombros, chacoalhando o frágil corpo. Nunca me aproximo, tenho para mim que o sujeito é parvo, amedronta-me a loucura. Mas divirto-me. Imagino-o sempre cantando Evidências.

Diz que é verdade, que tem saudade…

Em outros momentos me lembra o Carlitos. Principalmente quando gira o bastão ao lado do corpo. O próprio sensível e aluado vagabundo!

E então, não sei qual a razão, me bate uma tristeza danada. O ambiente ao redor torna-se mais escuro, se acinzenta, perco a noção do sol. As pombas arrulham mais forte, lugubremente. Passarinhos voam dali atarantados. E a música Smiles faz-se toda sentimento dentro de mim.

Deixo o local, caminho cabisbaixo para casa.

Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios…

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho