Noite de sexta-feira, vinte e oito de novembro, Petrópolis, a entrega do Prêmio Juca Pato aconteceria em alguns minutos. Lembrei-me de Vinicius de Moraes. Certamente naquele momento a felicidade não seria pluma que o vento vai levando pelo ar. Para mim havia mais peso nela, alegria imensa, incapaz de ser erguida por qualquer tempestade. Sueli Carneiro, a vencedora, havia declarado que leria seus agradecimentos. Não gostava de falar de improviso. Eu, pelo contrário, lamentei no íntimo ter que dizer palavras escritas antecipadamente. Sempre preferi falar olhando os olhos das pessoas, sem planejamento prévio, dizendo o que me vem na hora. Costumo me atrapalhar lendo. Mas ali havia a responsabilidade de não esquecer o que precisava ser dito. Apesar de certo nervosismo vendo o auditório lotado, celebrei internamente a conquista da UBE (União Brasileira de Escritores) em parceria com o Flipetrópolis. Felicíssimo!
Quando o chargista Benedito Bastos Barreto (o Belmonte), em mil novecentos e vinte e cinco, criou o icônico Juca Pato, que fazia críticas sociais representando o cidadão comum, satirizando problemas urbanos e o governo (especialmente o Vargas) em tirinhas de jornais, certamente não imaginava que, mais tarde, sua personagem ficaria ainda mais famosa ao ser escolhida por Marcos Rey, em mil novecentos e sessenta e dois, como símbolo para o troféu do prêmio Juca Pato, que a UBE passaria a entregar anualmente, escolhendo o principal intelectual daquele período. A láurea seria concedida a quem tivesse publicado obra de destaque no ano anterior e cuja carreira contribuísse para a cultura e a democracia no país.
O troféu foi conduzido de carro, vindo de São Paulo. Disse o diretor Fernando Dezena, que viajou com outros diretores da UBE, sobre o fato:
— Sabe quando o objeto é tão valioso que ganha até proteção? Pois é. Foi assim que subimos a serra de Petrópolis com o Juquinha. Ele viajou no colo, parou para fotos e nós felizes com a missão. Sensação doce de quem acompanhava um pequeno tesouro chegando ao seu destino.
O jornalista Jamil Chade, escolhido como mestre de cerimônias, abriu os trabalhos com fala emocionante, em que destacou, dirigindo-se principalmente a Sueli Carneiro:
— Estamos diante de artífice do Brasil plural, democrático, ancestral, feminino, um Brasil humanista. Estas mulheres e homens que vão subir ao palco agora são as verdadeiras soldas de uma nação que quer reconstruir seu futuro. Juntas são a resposta de uma sociedade que rejeita o ódio como instrumento de poder.
E então fui chamado ao palco junto com os diretores da UBE. E, em resumo, disse:
— Ao se observar o trabalho de Sueli Carneiro, vê-se muito bem articulado o esforço de entender e criticar os mecanismos de educação que envolvem a questão racial no país. Pensar o racismo, o sexismo e a desigualdade no Brasil vem sendo o cotidiano desta professora há muito tempo.
Sentadas na primeira fila, unidas e emocionadas, muito irmãs, estavam a jornalista Flávia Oliveira, Sueli Carneiro, Eliana Alves Cruz, Lívia Sant’Anna Vaz, Conceição Evaristo (vencedora de 2023) e Miriam Leitão (vencedora de 2024). Todas de branco, reverenciando Oxalá, o orixá da criação, considerado o “pai de todos”. O branco simbolizando paz, pureza, renovação e proteção espiritual, atraindo boas energias para o dia e para a semana. O prêmio seria entregue a Sueli Carneiro por Miriam Leitão, a vencedora do ano anterior, conforme tradição da cerimônia.
A oradora Flávia Oliveira, depois de abraçar todo mundo, falar da sorte em termos três mulheres vencedoras tão importantes nas últimas edições do prêmio, disse que foi informada de que a região onde está o Palácio de Cristal havia sido um território quilombola e que havia muito território preto em Petrópolis, em que pese uma história que tentava soterrar e disfarçar o fato. E que então tomava também aquela noite como reparação, restauração, retomada de um território também pertencente ao povo preto.
E depois foi a vez de Jamil chamar Conceição Evaristo. A impressão que tenho sempre que a vejo é a de estar diante de uma entidade divina. Com sua imponência e toda a autoridade de quem realiza escrevivências, ela afirmou:
— Tratar a intelectualidade negra de forma positiva, e reconhecer que somos agentes do pensamento brasileiro, e talvez do pensamento brasileiro mais radical, é uma justiça que nos fazem. E, Flávia, quando você fala em reparação, que bom que estamos tendo tempo de viver a reparação agora!
Em seguida, Eliana Alves Cruz, olhando para Sueli Carneiro, confessou:
— Eu tenho muito orgulho de você, Sueli! Eu olho para você e penso: uau, que bom que estamos aqui no mesmo tempo que você — e, ampliando então o olhar para todas, complementou — que vocês, minhas irmãs!
Ao finalmente ser chamada para entregar o prêmio para Sueli Carneiro, Miriam Leitão fez um delicioso comentário:
— É um momento de ostentação. Eu recebi o prêmio no ano passado das mãos de Conceição Evaristo e entrego agora para Sueli Carneiro. É muita ostentação!
O Juquinha foi entregue sob uma enxurrada de aplausos. Sueli Carneiro foi ovacionada pelos presentes. Ao agradecer, declarou:
Receber este prêmio Juca Pato, esta distinção histórica concedida a quem ousa pensar o país e se posicionar diante de seu tempo, é uma experiência que me atravessa profundamente. Ser reconhecida como uma das principais vozes do pensamento nacional é algo inusitado. Não no sentido da inadequação, mas no deslocamento histórico que isto revela. Sou, antes de tudo, uma militante negra, feminista, antirracista.
Ali, rodeado de gente bonita, por dentro e por fora, pensei no caminho do Juca Pato desde sua criação. Quarenta e nove estatuetas entregues para homens e nove para mulheres. Em nossa gestão, os seis últimos prêmios foram entregues para quatro mulheres, sendo um para Laerte, uma mulher trans. Certamente uma reparação, já que falamos tanto nela, sendo — e precisando continuar a ser — realizada.
E então Lívia Sant’Anna Vaz subiu ao palco. Com sua voz linda, cantou, depois de afirmar que só sabia rezar cantando. E cantamos juntos, embargados:
Eu chorei.
Sofri as duras dores da humilhação.
Mas ganhei, pois eu trazia Nãnaê no coração.
Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.
Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê.
Ano que vem o Juquinha estará novamente em Petrópolis.
Viva Sueli Carneiro!