As pessoas costumam dizer que sou privilegiado. Chegar aos setenta e um anos com mãe viva e lúcida seria uma dádiva. Concordo, embora desconfie da afirmação. Quem seria responsável pelo presente recebido? Se há uma doação, alguém precisaria ter assumido o gesto, resolvido possibilitar tal condição diferenciada. Soa estranho para descrentes como eu ouvir certas frases:
— Uma bênção de Deus!
Pois bem, sou mesmo abençoado, aceitemos a condição fortuita. D. Marise tem noventa e cinco anos e, embora miúda e frágil, o tempo pareça ter feito com seu corpo algumas ruindades, permanece capaz de manter conversação interessante, apesar da dificuldade em ouvir seus interlocutores. A surdez muitas vezes dificulta o diálogo, principalmente se estiver em ambientes com diversas vozes se elevando ao mesmo tempo. Aí ela se ausenta, parece desejar se proteger; os olhos parados e distantes mostram estar ela longe dali, indiferente à balbúrdia em seu entorno. Reuniões familiares, as mesmas que adorava, são agora quase um martírio. Alguém precisa se postar ao lado dela e servir de intérprete, repetir o que acabou de ser dito — às vezes mais de uma vez. A situação ideal é mesmo o tête-à-tête, quando consegue prestar atenção apenas em um emissor. Aí ela relaxa, retoma o bom humor costumeiro, participa vivamente da prosa.
Talvez seja uma característica presente demais em nossa casa, mas a palavra sempre foi assunto. É comum passarmos bom tempo analisando significados, etimologias, fascinados por algum termo surgido não se sabe de onde, imiscuído em frases aleatórias, intrometido na conversação sabe-se lá por qual razão. Geralmente paramos, chamamos atenção para aquele vocábulo incomum e passamos imediatamente a falar sobre ele. A temática do papo se perde, passa para segundo plano; frequentemente não retomamos a confabulação. Outro dia, não me lembro por quê, usei a expressão “carraspana”. Estava almoçando sozinho com mamãe. Ela imediatamente me interrompeu:
— Sua avó usava muito “carraspana” para se referir a um estado gripal.
Rapidamente busquei no celular a acepção. Encontrei mais de uma. A portuguesa realmente referia-se a uma constipação forte. Mas aqui no Brasil, e era sobre isso que eu me pronunciava, tinha a ver com bebedeira. Eu reportava uma situação em que um amigo se embriagara e fizera bobagem. De fato, usar “carraspana” talvez tivesse sido memória dos tempos de vovó, de alguma leitura, sei lá qual foi a razão de pinçar do vocabulário aquela raridade. D. Marise fechou os olhos, ficou um tempo absorta em seus pensamentos para, em seguida, encarar-me e afirmar com sua voz rouca e fraca:
— Mamãe, depois que descobriu sua ascendência portuguesa, passou a usar com frequência palavras lusitanas. Talvez fosse a maneira de afirmar sua identidade.
Vovó só descobriu sua origem aos dezoito anos. História triste, difícil, um dia conto.
E eu ali me senti mesmo privilegiado. Por ter mãe ainda viva. E ter vivido sempre em uma casa onde as palavras eram tão importantes. Dei então um beijo naquela mão cheia de veias, manchas senis, a pele fininha, de velha. As mãos de minha mãe.