Cafonice

O peso da idade traz leveza ao cronista na apreciação de manifestações culturais, sem se preocupar com a opinião alheia
Ilustração gerada por Inteligência Artificial
17/02/2025

Quando era menino me ensinaram o conceito de cafonice. Um dia, já não me lembro quando, declarei gostar de alguma coisa. Quem estava perto de mim, devia ser algum familiar, riu e afirmou ser aquilo falta de gosto apurado, quase uma heresia, seria mais sensato esconder aquela preferência, existiam determinadas escolhas que colocavam a pessoa em um escaninho incômodo, seria sempre inconveniente colocar o pinguim sobre a geladeira.

Aprendi direitinho e tornei-me uma criatura com muitos preconceitos. Volta e meia me pegava recusando apreciar aquilo que espontaneamente falava bem aos meus sentidos, aproximava-me do prazer mais popular. Demorei a ter coragem de assumir certos caminhos. Sempre inundado com a boa dose de esnobismo que me foi incutida. Melhor optar pelo elegante, fino, a beleza tinha certos segredos, não seria para qualquer um.

E então, meio encabulado, ainda sem forças para chutar para escanteio toda aquela pretensão idiota, eu repetia feito papagaio o que havia aprendido:

— Roberto Carlos é ruim demais. Como você tem coragem de ouvir essa droga?

Teria sido mais fácil desejar que tudo o mais fosse para o inferno.

Diminuía o som da vitrola em meu quarto para poder escutar Bee Gees, vibrar com o vibrato exagerado, e tão bonito, do Barry Gibb: I started a joke.

Não queria que meu irmão, conhecedor profundo do que havia de melhor no rock, amante do Moddy Blues e do Jethro Tull, viesse me encher o saco, dizer que eu era kitsch.

Cresci, enfim, procurando ler a crítica antes de arriscar minha opinião. Afinal, cedo percebi ser minha emoção meio piegas, mais para o bolero do que para a música clássica. Adorei ler Rosinha minha canoa quando menino, nunca conseguiram me convencer que José Mauro de Vasconcelos não era lá essas coisas.

Obviamente a consciência de que existiam obras de arte aceitáveis e outras que praticamente atentavam ao pudor fez com que me sentisse meio travado.

Jamais consegui parar na frente de um quadro e afirmar sem medo de censura que gostava do que via. E se aquilo fosse considerado ruim?

Hoje, com o peso da idade nas costas, e lixando-me para os outros, o mundo ficou bem mais fácil. Acho bom o que fala ao meu coração. E se me fizer chorar, bagunçar-me por dentro, melhor.

Considero poucas coisas cafonas: Donald Trump, família Bolsonaro, os pastores de direita tipo Silas Malafaia, alguns políticos como Nikolas Ferreira e Ricardo Salles. Existe alguém mais cafona do que a Damares Alves?

E tenho tentado ouvir música sertaneja. Preciso tentar me libertar de algumas amarras, os jovens não podem estar tão errados.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho