Anteontem

Reflexão bem-humorada sobre os tropeços da língua que nos assombram, dos “previlégios” às “meias tristes", até o controverso“antes de ontem”
Ilustração: Kleverson Mariano
24/11/2025

Quem escreve tem manias, cismas, olha as palavras com carinho, fica bravo quando percebe desrespeito com elas. Não sou diferente. Por isso, vivo me assustando com crimes lesa-idioma; é impressionante observar como as pessoas erram em seus dizeres, vivem cometendo heresias quando falam.

Outro dia, em um grupo familiar do celular, desses que nos incomodam o dia inteiro trazendo os mais variados assuntos, desimportantes, fazendo o aparelho tremer o tempo todo, formado por pessoas normalmente carentes e desprovidas de ocupação, perguntaram qual erro de português mais frequentemente me aborrecia. Embora normalmente faça questão de deixar as mensagens sem resposta, até como preservação, não resisti. O assunto era vivo demais. Imediatamente comecei a pensar, procurando na memória qual despautério linguístico mais provocava sofrimento em mim.

Depois de vasculhar muito nos miolos, cheguei a uma resposta. Certamente seria ouvir gente dizendo:

— Para mim é um “previlégio” conhecer você!

Mesmo sendo uma frase delicada, havendo simpatia na afirmativa, é para mim insuportável ver o “e” se intrometer no lugar do “i”. Por que não dizem privilégio, meu Deus?

Quando eu era menino, tive muita dificuldade em aprender que era “trouxe” e não “truxe”. Sempre que cometia o erro na frente de meu pai, era corrigido:

— É trouxe!

Eu não aprendia, teimava em me enrolar. De repente, enfiava um “truxe” no meio da frase.

— Eu “truxe” o boletim, papai.

Um dia levei um tapa.

— Se você não aprende por bem, vamos ver se assim se lembra — vociferou o velho.

Nunca mais errei.

Não defendo a estratégia violenta. Por mais que me irrite encontrar tropeços por aí, jamais usaria os recursos mal-humorados de meu pai. Apesar de reconhecer não haver maldade, a utilização da pedagogia lusitana lá de casa às vezes era excessiva.

E então boiaram, intrusas, as irritantes “meias”, tão frequentes em alguns diálogos:

— Hoje estou “meia” triste.

Por que flexionar os advérbios, meu Deus?

Para finalmente encontrar mal definitivo, o pior de todos, aquele capaz de fazer com que mil agulhas entrem em meu coração:

— “Antes de ontem” eu fui ao cinema!

O que seria “antes de ontem”? Estão querendo enterrar o anteontem!

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho