Amigo de direita

Cronista reflete sobre amizade improvável com um conservador, defendendo o diálogo em meio à polarização política no Brasil
Ilustração: José Lucas Queiroz
04/08/2025

Tenho um amigo de direita. Calma, não é necessário me cancelar, deve ser o único; conheci o cara no colégio, em nossa meninice. Crescemos muito próximos, embora, em termos políticos, sejamos como água e vinho. Sujeito inteligente, consigo conversar com ele; nunca fomos agressivos um com o outro. Tem a vantagem de ser firme em suas convicções. Declara, sem subterfúgios, seu credo:

— Sou de direita!

Geralmente, os conservadores disfarçam, dificilmente assumem o lado verdadeiro; invariavelmente, se dizem de centro para, em seguida, deixarem cair a máscara, manifestarem absurdos, mostrarem-se racistas, misóginos, homofóbicos, apoiarem a repressão policial mais vil que acontece nas ruas dos grandes centros. Assemelham-se a uma personagem do Chico Anysio:

— Tenho horror a pobre!

Pois bem, outro dia, esse companheiro antigo, leitor dos meus escritos, disse preferir quando as crônicas que escrevo não trazem posicionamentos sociais. Aquilo atingiu-me na boca do estômago. Aprendi, ainda na faculdade, que a boa literatura, além da linguagem caprichada, riqueza em metáforas e preocupação com a estética, precisava ter, em seu bojo, compromisso com o coletivo. Se existiam textos meus sem tal viés, muitos mereceriam ser jogados fora. Fui logo ficando inseguro. Na hora, reagi:

— Eu sempre me posiciono quando escrevo.

E torci para não ter deixado escapar alguma prosa mais fofa, ter-me perdido em gracejos e descrições tolas.

Mas, com certeza, o que mais interessa aqui é me verem surgindo, quase milagrosamente, com um amigo de direita. Quem me conhece consideraria o fato quase impossível. Mas gosto desse colega dos tempos dos dinossauros. Certa vez, ele declarou:

— Sou contra tudo o que o Ricardo diz, mas daria a vida para que ele continuasse podendo dizer.

A frase é meio clichê, mas mostra um indivíduo com boas noções do proceder democrático. Ele votou no Bolsonaro, eu no Lula; escolheu o Tarcísio, fiz campanha pelo Haddad; foi de Ricardo Nunes, alinhei-me com Boulos. Considera o Alexandre de Moraes um déspota, atira pedras no STF; desejo, com todas as forças, ver os envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro presos. Tornozeleira, para mim, é um acessório fundamental. Contudo, como é um cara sagaz, desconfio que deve achar o Trump uma besta. Mas é apenas uma suposição; nunca discutimos a respeito.

Cabe aqui uma reflexão. Há, realmente, uma polarização exacerbada no país e todos somos responsáveis. Obviamente, acho complicado dialogar com o sonho de teocracia evangélica acalentado por quase todo pastor. Os deputados fascistas do PL causam-me nojo. Considero, sim, o atual Congresso inimigo do povo. Como puderam aprovar a “PL da Devastação”? Mas posso e devo ouvir o meu amigo de infância. Sem armas.

Já existiu, no país, uma direita civilizada. Lembro-me do respeito que meu pai tinha pelo escritor Adonias Filho, notório integralista. Ele, apesar de ser aliado dos militares e amigo do Golbery, ajudou muita gente na época da ditadura, inclusive Jorge Amado. O maior amigo de Graciliano foi Zé Lins do Rego. Enfim, talvez eu acabe considerando ter mais um amigo de direita.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho