Já se passou muito tempo, mas ainda estamos aqui. O Brasil, graças a uma anistia espúria e covarde, não acertou contas com os assassinos que prenderam, torturaram e mataram pessoas. Não interessa o que elas faziam, pensavam, ou mesmo qual era a sua luta. Gente foi cancelada, depois de muito sofrimento imposto, com crueldade extrema, sem direito de defesa.
Fui assistir ao filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, baseado no magnífico livro do Marcelo Rubens Paiva. Saí da sessão bastante emocionado. Por várias razões: ter vivido o período mais crítico da ditadura; ter sobrevivido a ela — talvez por sorte; conhecer bem a família Paiva, principalmente a minha amiga Eliana Paiva; e considerar que, diferentemente do que aconteceu, por exemplo, na Argentina, não fizemos justiça. É difícil seguir em frente quando olhamos para traz e vislumbramos fantasmas sangrando, além de verdugos impunes, aposentados, recebendo polpudos salários, sem serem incomodados. A sensação mais forte por mim vivida, sempre, é a de que ainda estamos aqui, aguardando os poucos assassinos restantes pagarem suas contas.
Pleno verão de 1974. Ainda jovem, tendo acabado de completar vinte anos, estava em Salvador, na casa de meus tios Luiza Ramos e James Amado, aguardando pacientemente o carnaval. Férias da faculdade, as aulas só começariam em março. Primos, shows no Teatro Castro Alves, piscina, praia, a vida era mais bonita na cidade da Bahia. Foi quando fomos convocados para uma reunião na casa do ex-deputado comunista Fernando Santana e sua mulher Gilka. Oportunidade de vermos nossas amigas Márcia e Isabela, filhas do casal. Meu irmão, com dezoito anos, e minha prima Fernanda, com quatorze.
— Quando chegarmos vamos conversar, precisamos combinar um assunto muito sério com vocês — informou minha tia.
Descemos do carro. Fernando sempre foi um sujeito sério, confesso que tinha um pouco de medo dele. Ao contrário de Gilka. Brincalhona, desbocada, era divertido ouvir suas histórias. Logo estávamos os cinco mais jovens reunidos com os adultos. Fernando tomou a palavra.
— Amanhã receberemos aqui em casa, para passar uns dias com a gente, a Eliana Paiva.
Ficamos todos calados, a vontade que tive foi de perguntar:
— E daí?
Mas me segurei.
— O pai dela, o Rubens Paiva, foi preso, torturado e morto pelos milicos. Dizem que foi atirado de um avião na baía da Guanabara. Eunice, a mulher dele, e a própria Eliana foram levadas encapuzadas pela repressão. A Eliana ficou um dia em um corredor ouvindo os gritos de pessoas sendo torturadas antes de ser solta. A mãe dela esteve presa mais tempo e depois também foi libertada.
Finalmente não me contive:
— E o que vocês desejam da gente?
Minha tia Luiza respondeu:
— Que recebam bem a menina. Sejam cuidadosos, proporcionem a ela férias de sonho. A vida não tem sido fácil para a Eliana. Seria muito bom se ganhasse amigos.
E assim ficou combinado. Nossa amizade ainda está aqui, cinquenta anos depois.
Rubens Paiva foi torturado por cerca de cinco agentes militares. Dois ainda estão vivos: José Antônio Nogueira Belham, reformado no posto de marechal, com salário de 35 mil reais, e Jacy Ochsendorf e Sousa, reformado no posto de major, com salário de 23 mil reais.
Ainda estamos aqui.