O mundo acabando e eu aqui

O mundo acabando e eu pensando em escrever, desenhar e trepar. Não há nada que salve meu bom nome
18/05/2020

Penso na morte toda noite. Não em uma morte qualquer, aleatória, genérica. Penso na minha morte. Toda noite chego à conclusão de que ainda não posso morrer. Não posso me dar esse luxo. Filho não está criado. Dívidas não estão pagas, trabalhos ainda não foram entregues, prazos ainda não foram cumpridos. Mas é principalmente filho. Uma vez minha mãe me disse que filho era bom porque te dava forças para seguir adiante. Acho que não era bem isso que ela queria dizer, mas vale. Penso na morte toda noite. Toda noite fecho o olho torcendo para acordar no dia seguinte. Por isso não entendo quem não gosta de acordar. Não entendo quem não gosta de acordar e de acordar cedo, o mais rápido possível, para a gente se certificar de que está vivo. A vida pode ser uma merda às vezes, mas ainda é muito melhor que a outra alternativa. Acordo e levanto. A cama é uma pré-cova. Faço questão de dormir num colchão duro, para ir me acostumando. Assim que posso, saio da cama. Nem sexo eu gosto na cama. Prefiro no chuveiro. Só os vivos tomam banho. Tenho urgência de viver. Também pela antítese, adoro pagar conta. Adoro pagar um boleto porque já houve tempos em que não consegui. Então, pagar conta é sinônimo de vitória. Na mesma vibe, não faço média. Não faço política. Não puxo o saco de ninguém. Não dou nem bom-dia para quem não gosto. A vida é curta. Não vou desperdiçar um único sorriso, mesmo que falso, mesmo que amarelo. E, por fim, só brigo quando acho que esse enorme dispêndio de energia vale a pena. Se eu parei de brigar com alguém, foi certamente uma das três opções: eu perdi o interesse; perdi o respeito; acho que não fará diferença. E então veio a pandemia do corona e a leva de especialistas em saúde, economia, religião, segurança, iluminação, botânica e qualquer outro assunto tipo copa do mundo onde todo mundo vira técnico de futebol. Eu não tenho saco. Essa é a verdade. A igreja, que sempre foi muito boa em espetáculo, manda aquela foto do papa na Praça de São Pedro vazia. Isso sim é campanha. Aprendam, publicitários. Achei a foto incrível, mas ai que preguiça. Eu sou péssima costureira, mas adoro costurar. Fiz umas máscaras de tricoline duplo para quem eu gosto. Ficaram tortas, como tudo na minha vida. Nem é mais erro, já é um estilo. Um erro repetido muitas vezes se torna um acerto? Talvez. Não ligo. No trabalho, aquela tensão da iminência do desemprego. Quase como um moto-contínuo à quarentena, o inusitado advento do ex carente. O que teve de defunto reaparecendo no meu celular. Até que sexo seria bom numa hora dessas, mas não vale o risco. E, no fundo, acho que não vale nem mesmo o esforço. Homem tem mania de achar que é melhor de cama do que de fato é. Passou na minha porta uma horda de acéfalos seguidores de político. Já nem me importa mais qual político ou o que gritam. Conseguem ser mais burros do que seguidor de marca. Pelo menos os i-coisas ou x-tênis de fato servem para algo. O vizinho maconheiro tem dois cachorros idênticos e passeia com um de cada vez, desde antes da pandemia. A paz na cara dele de quem foda-se-total dá inveja. Chegarei lá, talvez não com essas quantidades industriais de maconha, mas, quem sabe, com alguma leveza de espírito. Sabe, o mundo é um lugar muito mais ou menos. Bom mesmo é passear com cachorro. O mundo acabando e eu escrevendo. Eu ia dizer escrevendo uma crônica mas sei lá que porra é essa. Me sinto o doido do Monet que ficava lá pintando florzinha durante a Primeira fucking Guerra Mundial. Não pinto florzinha pois tenho senso de ridículo em 2020, mas é quase isso. O mundo acabando e eu pensando em escrever, desenhar e trepar. Não há nada que salve meu bom nome. Eu não ligo. Depois de passar por um divórcio horrível, de aguentar ex filho da puta, de criar filho sozinha e desempregada, da falta de grana, de ser obrigada a conviver com o corona e com vizinho bolsominion (muito em dúvida de qual dos dois é o pior), de morte de mãe e outras perdas e de mais um monte de coisa que não estou a fim de contar, bring it on bitch é tudo o que eu tenho para dizer. Fui no mercado aqui do lado rapidamente. Tinha acabado o café, gravíssimo. Sacola retornável, máscara, não toca em nada Carolina, aquele estresse de entrar e sair o mais rápido possível, me sentindo dentro da primeira versão de Mad Max. Volto. Na porta de casa, um pedinte me pergunta se tenho uma batatinha frita para lhe dar. Que coisa mais específica. Não foi alguns dinheiros ou algo de fato importante como uma lata de leite, uma refeição, algo assim. Não. Batatinha frita. Me tornei a pessoa para quem pedem batatinha frita. Grunhi qualquer coisa e entrei no prédio mas estou até agora um pouco atordoada com o pedido. Batatinha frita é o novo cigarro na prisão? Ou batatinha frita é um codinome, uma gíria urbana e contemporânea que eu não conheço? De repente é tipo usar orégano para maconha. Vai ver o cara estava me pedindo alguma droga parecida com uma batatinha frita. Existe? Eu sou uma anta para essas coisas. Ou, pior ainda, eu tenho cara de quem sai para comprar batatinha frita no meio de uma quarentena. Perplexa e, ao mesmo tempo, bastante ofendida. De toda forma, por via das dúvidas, no próximo mercado eu vou comprar uma batatinha frita. Vai que.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

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