Verdade, essa inconstante

A interpretação — mais que a escrita e a leitura — talvez seja a mensagem que se aproxima cada vez mais da frágil ideia de verdade
Ilustração: Kleverson Mariano
20/11/2023

Acontece de, às vezes, encontrar frases ou palavras que me fazem companhia por tempos e tempos. Pode ser uma obsessão, uma repetição, uma cisma, uma atenção minha voltada a algo que vejo como objeto de desejo até que se esgote.

Numa das preparações para as aulas de escrita criativa, me deparei com a frase encontrada no volume Poética, de Aristóteles: “A palavra cão não morde”. É muito provável que eu já tenha passado os olhos nessa frase antes. Afinal, o livro foi comprado no período que eu frequentava a Faculdade de Letras. Ainda que eu tivesse passado os olhos, não me lembro de ter lido a frase. E se tivesse lido como li há poucas semanas, talvez tivesse, até que enfim, encontrado a tal frase impossível para tatuar num músculo meu que antes era duro. Aliás, penso nas palavras tatuadas que vão murchando com o tempo das peles amolecidas até ficarem tristonhas, cabisbaixas, derrotadas.

Quando nos dizem que uma tatuagem é permanente, não nos informam que, de fato, se transformam, como nossos corpos, em novas interpretações de uma matriz. Assim como a palavra cão não morde, o coração tatuado em 1990 será perfurado, sangrado, esvaziado, preenchido, inchado, perfurado, sangrado, esvaziado, preenchido, num carrossel ininterrupto. E ainda que as batidas estejam lá, em tambores sonoros, o músculo do coração, assim como aquele do braço que leva a imagem do órgão vermelho e apaixonado, enfraquecerá perdendo a robustez. Assim como a palavra cão não morde, isso não é um cachimbo. É natural.

E penso ainda nos saberes tão sábios que vamos acumulando só para, aqui e ali, serem refeitos e revirados por outro leitor da vida. A curiosidade e a observação são, posso arriscar, os únicos predicados possíveis que antecedem o da leitura para um escritor.  Mas a que leitura me refiro? Em O mundo desdobrável, pedra preciosa escrita pela Carola Saavedra, ela propõe, em trechos, uma leitura menos fundamentada na rigidez ou na repetição dessa rigidez. Ler o vazio, o abstrato e tentar — é difícil — sustentar o escuro, o invisível, a insatisfação da palavra. Talvez isso esteja associado ao desejo, à inconclusão possível, ao nunca satisfeito, à constante falha na tentativa de esgotar o sentido das coisas.

Como se criássemos através do texto, falado ou escrito, uma proposta de liberdade, de não saber, ou de um ponto zero, um ponto de partida. Não saber — ou não ter que saber — é liberdade. Imagine ter que opinar sobre todas as coisas o tempo todo? As colunas de opinião sempre me afligem, por exemplo. A proposta da entrega de um texto, do verbo como um através é o que sugere Délcio Teobaldo quando diz que a verdadeira reflexão nasce do confronto, da interseção dos opostos. “Como o fiel da balança, todas as palavras que têm o inter como prefixo, possibilitam reflexões muito profundas”, ele diz no seu belo Escambo, publicado em 2018, por ele mesmo.

Délcio nos deixou em 2021 e era um amigo. Faz imensa falta o seu olhar esperançoso, porém crítico do mundo. Sinto saudade da falta de cinismo dele. A sustentação do não saber e a interpretação me parecem passar pela ideia do Délcio e, também, da Carola. Como se fosse nesse lugar oco e sagrado, o inter, onde o cinza se desdobrasse do preto e do branco. É a interpretação de cada leitor a partir da proposta de verbo vinda também da proposta do leitor. A interpretação como lugar intangível, volátil, fugaz e cambiável. É possível que, por ser tão íntima, pessoal e transitória, seja a interpretação, mais que a escrita e mais que a leitura, a mensagem que se aproxima cada vez mais da frágil ideia de verdade, essa inconstante não confiável.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

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