O Pinho

Com sua presença solar, o livreiro português José Pinho deixou marcas imprescindíveis na cultura
O livreiro José Pinho, criador do Folio, em Óbidos, Portugal.
02/06/2023

Obrigado, Nara, por teres conseguido aturar-nos. Eu até que sou bastante fácil de suportar, não complico nada. Elas (as organizadoras) é que são o pior. Ficam querendo saber segredos dos outros e ficam chatas. Pssst: não digas nada disso a elas, porque se souberem vão ficar danadas comigo.

Assim me escreveu o Pinho, com cópia para as organizadoras em questão, exercitando uma das maiores qualidades que pode ter uma pessoa: o bom humor. Depois de ter comparecido ao Folio e, depois ao Latitudes, ambos na cidade de Óbidos (Portugal), ele me escreveu para agradecer o que para mim foi mais que um privilégio: foi um sonho.

Demorei a conhecer o José Pinho. Mas também faz poucos anos que eu escrevo livros.  Livreiro, dono da Ler Devagar, o homem do Folio, do Latitudes, do 5L e do último dos seus projetos, o CCBA (Centro Cultural do Bairro Alto), que ele finalizou lindamente. Quando nos conhecemos, eu não o larguei. Passamos horas rindo e bebendo vinho. Cheguei a dizer a ele que era porque ele, leonino, combinava comigo, libriana. De onde eu o via, parecia ter um feitio descomplicado e informal que esbanjava charme aonde fosse. No Folio de 2022, fui convidada a falar do Puro, o romance que era pra ser, não foi e que agora será. A organização chegou a imprimir o programa com o nome do romance, a editora. Mas não houve o livro e diante dessas mudanças de última hora, fui, ainda assim, mantida na programação. Quando fui participar da mesa, lá ele estava e, claro, com aquele seu carinho meio debochado, disse a todos que eu estava lá porque ficava insistindo para participar dessas coisas. Rimos todos. Eu o abracei no fim, fomos jantar.

De volta a Lisboa, nos encontramos para um café. Ele me levou a conhecer o centro cultural que ainda estava sendo reformado. Levou-me à casa dele, me mostrou o escritório. Parou, por acaso, em frente a um relógio no corredor e me disse: “sabes que tenho um problema?”. Eu já sabia. Disse que sim com a cabeça, meus olhos se cruzaram com os ponteiros do relógio. Um braço dado e “venha ver a minha cozinha”. Assunto chato. Assunto encerrado. Depois disso, o vi umas duas vezes no quiosque da praça do Príncipe Real tomando um café. Ele apareceu na apresentação do meu livro Eva. Daniel Mordzinski tirou uma foto nossa no dia. O registro virou tesouro.

No começo de maio recebi uma mensagem dele convidando para a homenagem que recebeu da câmara da cidade. Que pena, não estava em Lisboa, não pude ir. Semana passada, mandei um convite para que viesse no lançamento do meu primeiro livro editado em Portugal. Sobre a publicação, ele me disse algo como que já não era sem tempo. Mas não pôde ir. Ele estava pior. Pensei no relógio da casa dele. Não soube de mais nada até a terça à noite, dia 30 de maio: “O Zé se foi”. Foi cedo demais. Eu passava a gostar dele cada vez mais, como esse mar de gente que ele conquistou, me parece, sem qualquer esforço. Soube que foi rodeado por livros, amigos, família. Gente que vai sofrer a ausência solar dele todos os dias, a cada minuto daquele relógio que morde, mastiga e nos cospe fora. Apesar dos prazos desta vida, tem gente que não veio aqui a passeio.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

Rascunho