O caderno

Diante de linhas em branco, a aflição e a apreensão bailam em incertezas e desejos
Ilustração: Denise Gonçalves
16/09/2023

A aflição de escrever com lápis quando não está apontado me faz pensar nas unhas deslizando sobre o quadro negro ou em pontas de dedos escovando uma poltrona de veludo.

Por outro lado, o prazer deslizante da ponta afiada de um lápis é quase como o da ponta de uma língua.

Comprei um caderno novo há um mês e nada. Silencioso, imóvel, nada era escrito. Não havia palavra que quisesse entrar naquele espaço indigna e indecentemente branco.

Até que duas palavras chegaram e foram logo postas nas linhas virgens: aflição e apreensão.

Talvez fosse melhor manter o bloco de notas calado. O caderno das aflições me pareceu sombrio, roxo, pegajoso.

Devo escrever nele tudo que de aflitivo me ocorre?

Acontece que a ponta afiada do lápis deslizava sem cerimônia na lista de aflições e apreensões.

São coisas diversas, ainda que se pareçam na fisionomia.

Começam e terminam com o mesmo início e o mesmo fim.

Embora a aflição tenha olhos arregalados, a apreensão tensiona os olhos até diminuírem de tamanho.

Ambas esperam que a surpresa as deslumbre. São palavras esperançosas.

Esperançosas de que não tenha sido lá grande coisa o resultado do que estava encoberto. Que a aflição e a apreensão tenham sido uma perda de tempo, desperdício de energia.

No caderno fiz uma lista de aflições. Temporais e atemporais.

amor

horário do avião

acordar depois da hora

filho atrasado para chegar

as empregadas no Brasil dependuradas nas janelas limpando vidros

penhascos

grito

turbulência no avião

a criança perdida

amor

penhascos

veludo, amor e penhasco

unhas roídas

A lista de apreensões vinha igualmente caudalosa.

resultado do exame

resposta de trabalho

resposta

silêncio

resposta de mensagem

resposta de email

entrar no avião

resultado do teste

telefonema do médico

conta bancária

resposta

unhas roídas

O caderno segue meio vazio. Isso é uma aflição. O prazo para escrever um texto é uma apreensão.

Lembro-me bem do dia que morreu o amor.

Foi uma pedrada de um menino irresponsável. Muita pena.

Deixou imensa bagunça, tudo destroçado, sangrando, marcas, hematoma. A tia disse que com uma lambança daquelas pra morrer, melhor mesmo era nem ter tido amor.

Talvez fosse pardal ou tico-tico, já não sei. A gente era criança, não sabia a diferença.

Nem aflição, nem apreensão. É o depois, é o leite derramado. Muita pena.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

Rascunho