Rolezinho em Madureira

De mãos dadas com a filha, o pai passeia pelos bairros de sua infância entre memórias e o abrigo quente do afeto
Ilustração: Thiago Lucas
07/10/2023

Nos seus mais de 430 anos de existência, Madureira nunca testemunhou um inverno. Digo inverno na acepção clássica, com frio, dias mais curtos e baixo índice de umidade. Mesmo nos meses de junho, julho e agosto, uma simples caminhada pelas ruas do bairro permite experimentar na plenitude a prática da transpiração. É quase metafísica a sensação da camisa se unindo à pele por aquela película fluida, à beira do incandescente.

Essa foi uma das primeiras lições de Lia na manhã de sábado em que fizemos nosso rolezinho. “Que calor!”, reclamava a pequena a cada dez ou quinze minutos. “Devia ter ar-condicionado na rua.”

Poucas semanas antes, eu tinha ido à escola onde ela estuda para conversar com a turma da segunda série. O tema da aula era justamente o bairro em que nasci. Os alunos, todos moradores da Zona Sul da cidade, variavam entre oito e nove anos. Apenas Lia e uma colega conheciam Madureira. No caso da minha filha, em razão de uma rápida visita ao parque que, desde 2012, se tornou referência para a população do subúrbio.

Terminado o papo, vieram muitas perguntas. Uma curiosidade genuína e bonita de ver. As crianças queriam saber mais sobre o Mercadão, o estádio do Madureira Esporte Clube, a Estrada do Portela, a quadra do Império Serrano. Além do próprio parque, é claro. Chegamos a cogitar um passeio do colégio, que acabou não acontecendo.

Foi nesse dia que me toquei: Lia não tem a menor familiaridade com o bairro de seu pai, de seus avós, bisavós e tataravós. O chão onde sucessivas gerações de sua família pisaram, plantaram e colheram para que ela pudesse vir ao mundo.

Nascida no Humaitá, morando em Botafogo desde bebê, é natural que a palavra Madureira lhe seja um substantivo comum. Uma entre as tantas locuções que nomeiam coisas ou lugares, sem o abrigo quente do afeto. Bem diferente de mim. Embora tenha residido por lá apenas na meninice, frequentei aquelas ruas quase diariamente até encerrar o Ensino Médio. E, mais do que simplesmente memória, Madureira me deu uma perspectiva. Posso morar onde for; é dali, sempre, que vou olhar o mundo.

Lia se animou com a ideia do rolezinho. Desenhei um roteiro que se iniciava na Rua Carvalho de Souza, 163. A casa em que fui criado e onde atualmente funciona uma clínica médica.

“Madureira é longe”, ela comentaria, impaciente, durante a viagem de Uber. “Para quem mora em Cascadura, ou no Méier, Madureira é perto; longe é Botafogo”, eu disse. Lia ficou pensativa por alguns segundos e logo se distraiu com as pichações no muro da linha de trem.

Quando saltamos do carro, bem em frente à antiga casa, o tempo parecia imóvel. Mas seus vestígios eram queloides na paisagem. Falei sobre o piso de cacos de cerâmica que antes coloriam o quintal da frente, do muro agora transformado em grade. Ela ouvia, em silêncio.

Dali seguimos pela própria Carvalho de Souza e atravessamos o viaduto Negrão de Lima, dobrando na Rua Francisco Baptista. Expliquei que Francisco foi seu tataravô.

Enquanto percorríamos a Carolina Machado, ela se mantinha atenta às ofertas das lojas de brinquedos, perguntava sobre os preços, se era caro ou barato. Cruzamos então a Travessa Almerinda Freiras para desembocar novamente na Carvalho de Souza. Mostrei o sobrado da minha bisa — hoje um consultório odontológico — e a loja em que meu pai trabalhou quase a vida toda. Lia ficou curiosa em saber por que ele vendeu. Uma longa história, respondi. Qualquer dia eu conto.

Já estávamos perto da quadra do Império e, à porta dos diferentes comércios, locutores anunciavam as promoções do dia. Dez meias por trinta reais é só aqui, aproveita, freguesa, amanhã já acabou. As vozes se fundiam a buzinas, músicas, apitos, falas, motores. A cidade viva em seu discurso, pura algaravia.

Lia pediu fotos ao lado da estátua de São Jorge e próximo ao palco, onde as letras em verde-bandeira formam o nome da agremiação. “Vou mostrar pro pessoal da turma”, avisou. Do lado de fora a centopeia humana se movia, alheia ao santo, ao Império, a nós.

Subimos a passarela espremidos entre os camelôs e, no corredor central, fui obrigado a parar. Alguém vendia minicoelhos.

“Compra um pra mim?”

Ainda viriam cabritos, galinhas, pombos. As imagens de orixás, os sacos de bala. O Mercadão é um parque de diversões para quem ainda não perdeu a infância.

Tive que apressar o passo porque faltava a parada no estádio do Madureira antes que o almoço fechasse nosso roteiro. Ela adorou pisar na arquibancada e entrar no campo onde os jogos acontecem. Achou enorme.

Voltamos para casa exaustos, suados, ávidos por um banho. E logo a rotina se impôs. Fazer o dever de casa, brincar com a amiga, jogar no tablet. Mas se a memória é feita de escombros, talvez alguma imagem tenha se fixado. Um cheiro, um som. Que ressoará no futuro, como uma melodia sutil. O assovio de um pássaro que, já morto, por vezes ainda é capaz de cantar.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho