Receita de leitor

O leitor não germina porque é “importante” ler, muito menos por medida compulsória; é mágica cujo truque se desconhece
Ilustração: Marcelo Frazão
16/03/2024

Ao longo de 2023, cumpri um roteiro por dez cidades do lado da também escritora Débora Ferraz. Nossa viagem fazia parte do circuito Arte da Palavra, que o Sesc promove anualmente, levando cerca de 50 autores para mais de 100 municípios em diferentes estados do país. Essa, aliás, é uma das características mais bacanas do projeto: juntar escribas com distintos sotaques, estilos, pegadas, e colocá-los frente a frente aos leitores de outras regiões. É o Brasil vendo a própria face num espelho que reflete o outro.

A temporada inicial, em Santa Catarina, significou para este carioca o resgate de casacos e cachecóis que havia muito dormiam no fundo do armário. Até que deu para disfarçar o cheiro de mofo. Nem todo mundo sabe, mas o fato é que no Rio não temos quatro estações, ao contrário das localidades em geral. São apenas duas: o Verão e o Inferno.

Débora, que nasceu em Serra Talhada — terra de Lampião — e hoje mora em João Pessoa, também sofreu com as temperaturas por volta de sete graus. O contraste climático refletia discrepâncias de outras ordens. Estivemos em cidades com 20 mil habitantes. Para se ter uma ideia, só Madureira, o bairro onde nasci, tem mais de 200 mil. Esse encontro amoroso de alteridades é tão salutar quanto urgente num momento de tamanha radicalização, como o que temos vivido ultimamente.

E foi assim, cercadas de afeto e genuíno interesse, que se deram as conversas com professores, universitários e estudantes do Ensino Médio. Após ouvirem nossos relatos sobre o início da carreira de escritor, os primeiros rabiscos no papel, o nocaute que a transpiração costuma impor à “musa inspiradora”, o público nos brindava com perguntas muitas vezes desconcertantes. Os temas variaram de cidade a cidade, de plateia a plateia. Mas houve uma questão que se repetiu em todas as conversas:

— Como vocês se tornaram leitores?

Minha parceira de viagem lembrou das tardes labirínticas entre as estantes da biblioteca de Serra Talhada. Das aulas de Matemática atravessadas por histórias que latejavam na mente. Do dia em que caiu em suas mãos um livro chamado Venha ver o pôr do sol e ela decidiu o que queria fazer da vida era despertar em alguém uma sensação parecida com aquela que os contos de Lygia Fagundes Telles lhe provocaram.

Foi curioso, e igualmente alentador, perceber que não estou sozinho. Assim como a Débora, a literatura me ganhou pelo encantamento ou pelo espanto, quase sempre pelas duas coisas juntas. Quando criança, gostava de ler histórias em quadrinhos. Das HQs, passei aos romances da coleção Vaga-Lume, que traziam tramas de mistério especialmente escritas para o público jovem. Os textos tinham um jeitão de folhetim. Como nas séries hoje tão acessadas nos apps de streaming, cada capítulo terminava com uma situação irresolvida. Era irresistível começar logo o seguinte. Só não havia o aviso de 15 segundos, como acontece nos episódios da TV. E nem precisava.

O passo seguinte foi a crônica, gênero que me desvendou o meu próprio tempo. Estava acostumado, na escola, a ler obras como Iracema e A Moreninha. Com todo respeito a José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, dois escritores da mais alta categoria, eram histórias bem distantes da realidade à minha volta. Relatos idílicos, conforme preceituavam as premissas do Romantismo. Ótimos para se estudarem os estilos de época, nem tanto quando se trata de transformar um adolescente em leitor.

Imaginem, então, o susto ao me deparar com a história de um homem que vai caminhar tranquilamente no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e acaba sendo assaltado. A crônica, intitulada Depois do jantar, integrava o livro Os dias lindos, de Carlos Drummond de Andrade. E em muitos aspectos parecia me dizer respeito. A Lagoa, contumaz referência geográfica do Rio de Janeiro. O hábito da caminhada, que minha mãe sempre praticou como atividade física. E, claro, o assalto.

O texto tinha ainda um irresistível tom de humor. Em dado momento, a vítima propõe que o valor trazido em sua carteira seja dividido com o criminoso. Que, por sua vez, nega o pedido, mas oferece um trocado para o ônibus.

A crônica de Drummond me abriu as portas para esse gênero literário tão despojado e tão próximo de nós. Para além disso, mostrou que a literatura, quando não encarada como mera obrigação, pode ser um universo fascinante. Embarquei sem passagem de volta.

Em um dos debates do Arte da Palavra, alguém perguntou que conselho eu daria para formar um leitor. Não há receita. Cada qual tem seus interesses temáticos, faz suas próprias descobertas. O leitor não germina porque é “importante” ler, muito menos por medida compulsória. É um sortilégio, um feitiço. E das melhores mágicas a gente não conhece o truque.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho