Preencher um Vazio

Envelhecer é colecionar sombras — e talvez nisso haja mesmo uma beleza; uma reflexão sobre o vazio e o tempo, inspirada em Dickinson, Tanizaki e Magritte
Ilustração: FP Rodrigues
09/08/2025

“Para preencher um Vazio/ Inserir a Coisa que o causou”, escreveu Emily Dickinson num de seus poemas mais contundentes. O artigo definido aponta para a exatidão: “a” coisa. “Tentar bloqueá-lo/ com outra — e mais vai se escancarar —”, dirão os versos seguintes, expondo o paradoxo. Se uma outra coisa é colocada no lugar da que falta, em vez de preenchimento, teremos um vazio ainda maior.

Esse curto e poderoso texto da poeta americana me conquistou à primeira leitura, muitos anos atrás. Quem não conhece o “efeito estepe”, a tentativa de manter o carro em rotação com um pneu substituto que, contudo, não gira como o anterior? A direção treme na mão; sente-se cada solavanco.

O desespero de preencher um vazio muitas vezes faz com que a gente bote qualquer coisa no lugar dele — inclusive pessoas. Mas o oco continua lá.

Tempo, tempo, tempo, tempo. Contar com seu trabalho silencioso, zerar o jogo, instituir uma nova rotina. Flutuar no céu oblíquo, nesse extravagante entreato. O vazio projeta uma sombra, e o nome dela é saudade.

No livro Em louvor à sombra, o romancista japonês Junichiro Tanizaki fala sobre a importância da penumbra entre as sociedades orientais. “Nossa maneira de pensar é esta: a beleza inexiste na própria matéria, ela é apenas um jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre as matérias”, destaca. Então evoca a alegoria de uma gema fosforescente, que brilha no escuro, mas perde o encanto se exposta à luz solar. “Creio que a beleza inexiste sem a sombra.”

Pois envelhecer é colecionar sombras — e talvez nisso haja mesmo uma beleza. Sem a claridade plena, perdemos em limpidez. Ganhamos, porém, os meios-tons, que oscilam como a vida. Grandes derrotas, pequenas vitórias. Assim vamos.

Mas às vezes a sombra toma tudo de assalto; até parece noite. É quando mais importa lembrar que, se dentro do dia está a noite, dentro da noite está o dia. Rever O Império da Luz, de Magritte — clarão e tempo em dissonância, tudo junto e misturado. Ou chamar, novamente, Emily Dickinson: “Não se pode soldar um Abismo/ Com Ar”.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho