Pisar no chão devagarinho

A falta de cortesia e respeito de quem ignora a ancestralidade do samba e a importância de seus baluartes
Ilustração: Marcelo Frazão
09/12/2023

O grupo era composto por um homem e três mulheres, todos brancos, na casa dos 40 anos. Trajavam roupas que sugeriam o status de membros da classe média alta carioca e haviam chegado à Praça Paulo da Portela, em Oswaldo Cruz, para ver os shows de Fabiana Cozza e Martinho da Vila, parte da extensa (e incrível) programação do Trem do Samba.

O evento, que no sábado passado teve sua 28a edição, foi criado pelo cantor e agitador cultural Marquinhos de Oswaldo Cruz. Além de marcar o 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba, propõe uma evocação das viagens feitas pelos músicos que se dedicavam ao gênero na década de 1920. Assim como outras manifestações de matriz africana, o samba era proibido no Rio de Janeiro. Os compositores e ritmistas então se reuniam na Estação Central do Brasil logo após o expediente, e embarcavam rumo aos subúrbios. Nos vagões, sem a vigilância da Polícia, podiam tocar e cantar com liberdade. É o que reencenamos a cada ano, com o trem ocupado por conjuntos percussivos cujo repertório homenageia os artistas que já se foram, mas sem deixar de apontar para o futuro.

O movimento de drible coletivo na repressão era comandado por Paulo da Portela. Ele que hoje dá nome à praça onde aconteceu o episódio envolvendo o grupo de quarentões. No local, há um busto com o rosto de Paulo. É um reconhecimento de sua importância para a história do samba e também para a formação da própria Portela, cuja primeira sede funcionava ali.

Pois o rapaz que acompanhava as três moças achou por bem pendurar uma grande bolsa de couro no pescoço da efígie esculpida em bronze. O que levou meu amigo Luiz Espírito Santo a interceder. Morador do Méier, bairro próximo a Oswaldo Cruz, professor de Geografia e frequentador assíduo da quadra da Portela, ele pediu educadamente que a bolsa fosse retirada.

“Houve um mix de perplexidade com meu pedido. As amigas dele começaram a rir, a desdenhar”, conta. Ao ver o homem se aproximar novamente do busto, Luiz chegou a cogitar que, apesar da chacota, seu pleito seria atendido. Mas não. O rapaz subiu na base que sustenta o busto, abriu a capanga, retirou um pouco de maconha, e voltou a apoiar a bolsa sobre a escultura.

Prevendo um confronto que estragaria a noite, Luiz decidiu ir embora. A justa revolta acabou expressa em post nas redes sociais. Reproduzo o relato aqui porque, embora não possamos afirmar que espelha uma conduta disseminada, tampouco se trata de caso isolado.

Um dos méritos do Trem do Samba é justamente quebrar, ainda que por algumas horas, a mão única que caracteriza o trânsito entre as zonas norte e sul. O morador do subúrbio costuma ir às áreas mais abastadas, seja para trabalhar, fazer seu “corre” ou dar um simples mergulho no mar. O oposto, contudo, é ocorrência rara. O Rio é uma cidade que não se conhece e nem parece fazer questão de se conhecer.

Por isso, ainda que muitas vezes o deslocamento até Oswaldo Cruz seja envolto por uma visão folclórica, falsamente antropológica, é louvável que milhares de cariocas se permitam sair um pouco de sua confortável bolha. E, diga-se, sejam recebidos com tanta gentileza. Bares, restaurantes, barracas de lona, carrinhos de ambulante… O bairro se enfeita e acolhe os visitantes como quem oferece bolo de fubá e café recém-passado.

Mas ao convidado também cabem cortesia e respeito. Fortemente centrado sobre um saber afrodiaspórico, trazido pela população expulsa das regiões nobres da cidade, o universo suburbano ressoa fundamentos que estão na ossatura do samba e da macumba, dois entes que quase sempre se interpenetram. Nesse sistema de conexões entre o ser e o mundo, ancestralidade não é passado, e sim refazimento, vínculo com o presente. Não se chega em uma roda de samba sentando e pegando o pandeiro, o tantã ou o cavaco. Não se entra no terreiro mexendo em assentamento. E não, não se pendura mochila em busto de baluarte.

Há uma brutal diferença entre símbolo e emoji, sacralidade e fetichismo. “Alguém me avisou/ Pra pisar nesse chão devagarinho”, já cantava Dona Ivone Lara, como quem dá a senha.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho