O saber dos bares

A ciência dos bares desafia a razão com regras empíricas sobre beber, comer e esperar, mesclando sabedoria popular e lógica científica
Ilustração: Bruno Schier
13/09/2025

O método científico, grosso modo, se baseia em cinco passos. O primeiro é a observação, que consiste em identificar o problema ou fenômeno a ser investigado. Seguem-se a formulação da hipótese e a criação de experimento para que ela seja testada. É quando se dá a análise dos resultados, a fim de verificar se a hipótese se confirmou ou não. Na etapa final, será formulada a conclusão.

Pois os bares também têm sua ciência. Princípios particularíssimos que, contudo, não se centram em ensaios ou papers. Seu método é quase totalmente empírico. O que não impede que tenhamos fortes hipóteses a serem colocadas à prova. Quem circula pelas biroscas da cidade, qualquer cidade, certamente já esbarrou com alguma delas.

A mais famosa talvez seja aquela segundo a qual não é aconselhável misturar fermentados com destilados. Pesquisas já comprovaram que o corpo metaboliza todo o etanol da mesma forma, não importando o tipo de bebida. Os mesmos estudos mostram que a combinação tampouco influencia no tamanho da ressaca. Mas as evidências da boemia têm sua lógica própria. E, segundo ela, é melhor escolher com o que se embebedar. O preço da desobediência pode ser alto: muito sono, muito enjoo e um insistente martelo batucando dentro da cabeça. Eu passo.

Outro célebre mandamento dos bares vaticina que não se deve beber sem ter comido antes. Lembro dos tempos do Bar Getúlio, no Catete. Seu dono era Wilson Flora, personagem conhecido do circuito carioca que, embora nascido na Paraíba, todos chamam de Baiano. Ele costumava colocar uma colher de azeite na boca dos amigos antes de começarem a chegar os copos. “É pra forrar o estômago”, dizia. E a gente obedecia, meio constrangido.

Mas o Baiano tinha lá sua razão. A comida diminui a velocidade com que o álcool é absorvido pelo organismo, retardando seus efeitos. O azeite, assim, funcionaria como uma barreira, ainda que tênue, para dar mais tempo ao castigado fígado no trabalho de processar a toxicidade da bebida. É um dos casos em que a sabedoria dos bares ressoa a ciência — tubos de ensaio em tulipas de chope lado a lado, em perfeita harmonia.

Outras vezes, a regra não escrita dos bares até conversa com a sapiência dos cientistas, mas a seu próprio modo. Ou seja, dando um brilho de tampo de mármore ao marrom fosco da explicação técnica. Bom exemplo é a máxima de que é preciso esticar ao máximo a primeira ida ao banheiro se a pessoa está bebendo cerveja, ou chope. A partir dessa visita inaugural, reza o mesmo princípio, o retorno será iminente.

Conversei com duas médicas, que são também boas levantadoras de copo americano e doses de cachaça, para elucidar a questão. Elas explicaram que o álcool reduz a produção do hormônio antidiurético, o ADH. Sem ele, os rins excretam mais água na urina, tornando-a mais diluída. Mais urina, mais banheiro.

De fato, leva algum tempo para que o ADH comece a sumir do mapa, o que pode explicar a resistência do cervejeiro a despejar seus excessos pela primeira vez. Mas as repetidas voltas depois não têm a ver com a heroica espera, e sim com o tal hormônio. O que não chega a ser um revés porque, no fim, a consequência prática é a mesma. De um jeito ou de outro, o banheiro logo vai se tornar um velho conhecido.

“Eu não resisto aos botequins mais vagabundos”, diz a canção de Aldir Blanc e Moacyr Luz, que nós, membros dessa confraria, adotamos como hino. O saber dos bares não é uma ciência, mas ajuda a administrar o dia a dia, a minorar os danos de um apego que arrebata e pode, igualmente, destruir. Embora o boêmio não vá ser nunca um prodígio no quesito vida saudável. Como me disse o malandro, certa vez, ao sair do Bip Bip: “Bebo pra ficar ruim. Se fosse pra ficar bom, tomava remédio”.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho