O Fluminense e o ninho de traças

Depois de viver um sonho com o time do coração, chega a hora de exterminar os inimigos que ameaçam os livros espalhados pela casa
Ilustração: FP Rodrigues
12/07/2025

Foi no jogo contra a Inter, de Milão, que percebi. Cerca de dois centímetros abaixo do quadro com a imagem do gato preto, preso a uma das paredes do meu quarto, havia um ninho de traças. Discreto, quase imperceptível. A partida no Bank of American Stadium, em Charlotte, sudeste dos Estados Unidos, terminou com vitória do Fluminense. Um inverossímil 2 x 0, que contrariou todas as bancas de apostas ao redor do mundo.

O Tricolor das Laranjeiras havia entrado em campo, e no campeonato, como mero coadjuvante. Sua folha salarial — R$ 143 milhões anuais — contrastava com a dos principais candidatos ao título. A do Real Madrid soma R$ 1,79 bilhão; a do Bayer de Munique, R$ 1,76 bilhão; a do Chelsea, R$ 1,29 bilhão; a do PSG, R$ 1,26 bilhão. Mesmo fora do âmbito europeu, a comparação financeira pesava. O árabe Al-Hilal, por exemplo, gasta R$ 1,13 bilhão em salários anualmente. Patamar distante inclusive de clubes considerados ricos no Brasil, como Flamengo (R$ 288 milhões) e Palmeiras (R$ 246 milhões).

A classificação para as oitavas-de-final já seria considerada um desempenho positivo para a maior parte dos tricolores, que temiam uma goleada quando houvesse o confronto com algum time europeu. Mas o Fluminense surpreendeu. Passou às oitavas em segundo no grupo, eliminou a poderosa Inter e o bilionário Al-Hilal, e alcançou o improvável: as semifinais do torneio.

Ao longo desse período, caíram o Manchester City, o Bayern, os portugueses Porto e Benfica, os argentinos Boca Juniors e River Plate, além de Palmeiras, Flamengo e Botafogo. Já o Patinho Feio foi avançando.

Assisti ao jogo contra o Al-Hilal no mesmo lugar em que tinha visto o confronto com a Inter. O ninho de traças estava lá, intocável, debaixo do quadro. Porque o futebol tem seus mistérios, e é preciso respeitá-los. O ímpeto de remover as traças, ação necessária sobretudo numa casa cheia de livros, se dissipou quando o juiz deu o apito final na decisão das quartas. Estávamos entre os quatro melhores da Copa do Mundo, literalmente loucos da cabeça, e decerto haveria uma relação entre o inesperado feito e aquele discreto casulo. Não me cabia interferir.

Escrevo essas linhas poucos minutos após a eliminação que a semifinal nos reservou. Um duelo em que o Chelsea foi superior e no qual o Flu sentiu finalmente os efeitos do abismo financeiro. Com dois jogadores suspensos e um contundido, nos faltaram reservas à altura, que sobram no elenco inglês. Faltou, também, um pouco de sorte. Uma bola foi tirada pelo defensor em cima na linha. O pênalti marcado pelo árbitro, que seria confirmado no Brasil, acabou cancelado pelo VAR. E eles contaram com João Pedro, contratado para a fase final por um caminhão de dinheiro, em estado de graça. Curiosamente, um cria de Xerém.

Não deu para ir à finalíssima, como todos sabem. Mas o desempenho no torneio me dá um baita orgulho do meu time. Foi bonito testemunhar a valentia e a entrega tática dos jogadores, que pareciam correr em nome de uma utopia. Ser David contra Golias, caminhar mesmo sem pernas, como escreveu Eduardo Galeano. A realidade — ou a força da grana — se impôs. Acontece quase sempre. O que não tira uma lasca sequer do assombro de ter vivido esse sonho. Agora vou pegar o inseticida e enfim exterminar aquele ninho de traças.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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