O sol ameno tornava menos árdua a caminhada sob uma temperatura de minguados sete graus. Não me lembro em qual rua estava, só que era próxima à Calle Jorge Luis Borges, que liga o centro de Buenos Aires a Palermo Soho. A Calle Borges desemboca na Plaza Julio Cortázar e nunca entendi por que não há, na esquina entre as duas, uma placa com o nome de cada escritor para saudar esse esplêndido encontro.
Carregava uma bolsa com livros comprados pouco antes. Uma novela de Mario Levrero, o diário de viagem feito por Adolfo Bioy Casares em sua visita ao Brasil, em 1960, e Las cosas menores, romance de estreia da argentina Giuliana Megale Rocco. A ideia era almoçar num restaurante ali perto, bem recomendado pelo seu corte de vacío (a nossa fraldinha, com sotaque castelhano).
As calçadas ainda transpiravam a chuva de algumas horas antes, mas o sol ganhara a contenda. Se as férias são capazes de restaurar a errância que quase sempre perdemos no correr dos dias, aquele era um começo de tarde radiante. O frio arrefecera, as ruas ofertavam uma amabilidade rara, dourada pelo quase silêncio da segunda-feira. Todos trabalhavam, menos eu — e essa extravagância me deixou à beira da soberba.
Digressões à parte, era preciso encontrar o tal restaurante. E se parei por um momento, foi justamente para checar o melhor trajeto até lá. Estava a sete minutos, me informou o Google Maps. Bastava andar por mais três quarteirões. Já havia guardado de volta o celular no bolso quando, ao levantar levemente a cabeça, notei a mulher à janela.
O prédio branco, de arquitetura banal, tinha duas colunas num cinza escuro que demarcavam o espaço das esquadrias em cor marrom. Eram três faixas, cada qual divisada pelas vidraças das janelas, também em número de três. Sobre a fachada, projetava-se a sombra de uma árvore quase seca, mas não a ponto de encobrir o tênue amarelo do outono. Como uma intrusa, a caligem dos galhos estendida na banda esquerda da parede reivindicava sua participação naquela cena, me obrigando a fixar a atenção sobre cada partícula da imagem, para além do plano geral. Foi o que fiz.
Havia somente uma janela aberta, mesmo assim em parte. Com seus setenta, quem sabe oitenta anos, a mulher ocupava a fresta direita da moldura. Os dois outros compartimentos estavam cobertos pela cortina. Um cachecol colorido protegia o pescoço; sobre a camisa ela vestia um casaco preto. Mantinha as mãos apoiadas no parapeito, semicerradas, e a fronte, altiva, voltada para o sol. Pelo menos durante o tempo em que fiquei ali, seus olhos não chegaram a se abrir.
A réstia mais intensa da luz se centrava sobre o rosto, como uma máscara que recorta, na pedra bruta, o viço da expressão. Talvez pensasse, a mulher, sobre a filha tão amada e hoje distante. A neta que quase não vê. Talvez o marido que partiu, deixando a solidão tomar os cômodos do apartamento. O eco de uma alegria antiga, um desalento que voltou a boiar. Ou nada disso. A filha, sim, enredada pelo trabalho. A neta na faculdade, debruçada sobre os livros de Direito, Medicina ou Belas Artes. O marido estirado na cama do quarto, prostrado pela preguiça pós-almoço, numa quietude rara. Os bisnetos, se há bisnetos, às voltas com o tablet.
“Talvez” é uma expressão ardilosa, escorregadia. No registro em espanhol, divide-se em duas palavras — “tal vez” — e essa pequena pausa, esse vazio entre os termos, abre um breve intervalo para a cogitação. É possível que a mulher à janela estivesse apenas mergulhada em si mesma, fazendo amizade com o sol, experimentando cada sentido em seu tempo mais íntimo, roçando a própria pele na pele do mundo. Talvez fosse assim, eu supus, e então parti rumo ao restaurante.