Mapa íntimo

As ruas da nossa vida são um espelho onde a história reluz, o labirinto que riscamos com nossos próprios passos
Ilustração: Bruno Schier
17/02/2024

Sempre acreditei que os bairros onde moramos ajudam a burilar nossa personalidade. No homem de 51 anos que sou hoje, trago bastante de Madureira, a matriz dessa estação tão decisiva que é a infância. Também algo da Barra da Tijuca. Outras porções vêm da Urca, do Jardim Botânico, de Laranjeiras, da Lapa, de Botafogo. Na síntese de uma soma nem sempre redonda de peculiaridades, o desenho se esboça.

Os bairros se definem igualmente assim, como um breviário de suas ruas. Cada qual com sua topografia, suas manhas, sua psiquê — atributos que podem ou não reverberar nos nomes que elas carregam.

Morei na Avenida Sernambetiba, hoje chamada de Lúcio Costa. O antigo título fazia referência ao sernambi, pequeno molusco que era encontrado em profusão naquela área. A coesão entre a denominação e o perfil da via, debruçada à beira-mar, prescindia de grandes explicações. O sernambi sumiu dali faz tempo. Quando foi sancionada a homenagem ao arquiteto e urbanista Lúcio, ninguém mais tinha ideia da sintonia entre o nome de outrora e o ecossistema local. Que, aliás, vem sendo goleado pela ocupação humana, como bem sabem — ou sabiam — os tatuís.

Antes disso, minha casa ficava na Carvalho de Souza. A rua liga Madureira a Cascadura, passando sob o Viaduto Negrão de Lima, e seu trajeto atravessa as duas frações daquela que já foi chamada de “Capital dos Subúrbios”. De um lado, a região mais residencial, povoada de casas e pequenos edifícios; do outro, o comércio pujante. O senhor Carvalho de Souza, por mais que pesquisasse, não consegui descobrir de onde veio ou o que fazia. Nem mesmo no referencial Histórias das ruas do Rio, de Brasil Gerson, há menção a ele. E, ao contrário do que acontece na Zona Sul da cidade, as placas indicativas das ruas do subúrbio costumam trazer apenas o nome do logradouro, sem qualquer informação sobre o sujeito homenageado. Mais um sinal da secular diferença de tratamento pelo poder público.

Nos anos em que vivi na Urca, ouvi muito o relato segundo a qual a Avenida São Sebastião tinha sido a primeira rua da cidade. Balela. De fato, foi na vila fortificada aos pés do Morro Cara de Cão, onde ficaria o bairro, que Estácio de Sá plantou os fundamentos do Rio de Janeiro. A futura avenida se assentou sobre o caminho que unia a enseada da Baía de Guanabara ao Forte São João. Mas a via inaugural da cidade, segundo o informe oficial, é mesmo a Rua da Misericórdia, no Centro.

A São Sebastião deu início à minha “fase das ladeiras”, que continuaria na Rua Faro. Se as duas têm algo em comum, fora a acentuada inclinação, é a sinuosidade. São vias bucólicas, sossegadas, que talvez servissem como um contraponto ao meu gênio inquieto. A Faro deve seu nome a Luís de Faro, antigo dono de uma chácara que ali se localizava, e nunca fez muita questão de assumir contornos urbanos. Lembra uma rua interiorana, onde o silêncio é quebrado apenas pelo canto dos passarinhos — ou as investidas dos saguis em busca de frutas.

Terceira ladeira dessa cronologia particular, a Almirante Salgado se distingue igualmente pela tranquilidade. Nasce na Rua das Laranjeiras, com seu nervoso trânsito de carros e pessoas, mas vai ganhando quietude à medida que a rampa é vencida pelo caminhar. Curiosamente, um oposto à trajetória de João Mendes Salgado, o tal almirante. Mais conhecido como Barão de Corumbá, ele teve uma vida febril. Lutou na Guerra do Paraguai e, graças à coragem demonstrada nesse e em outros combates, recebeu a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul e a Ordem da Legião de Honra.

Também a Rua do Riachuelo, para onde mudei em seguida, assumiu o atual nome por questões militares. No caso, a batalha naval entre o Brasil e Paraguai, que aconteceu em 1865, um ano antes do rebatismo. A via até então se chamava Rua de Matacavalos por uma razão prática: ali havia atoleiros que dificultavam o trânsito dos animais, muitas vezes levando-os ao sacrifício.

A Riachuelo começa na Praça Cardeal Câmara e termina na Rua Frei Caneca. Em seu percurso, encontramos oficinas, mercados, botecos, salões de beleza, farmácias, hotéis, lojas de tintas, de roupas, de colchões… É um verdadeiro furdunço, entremeado por prédios e moradias de personagens célebres da literatura brasileira, como o machadiano Bento Santiago, do romance Dom Casmurro.

Fiquei por cinco anos, e bebi por dez, na Lapa. De lá sairia para aportar onde moro até hoje: a Rua Álvaro Ramos, em Botafogo. Já com o nome corrente — um tributo ao cirurgião e destacado membro da Academia Nacional de Medicina —, era um local conhecido pela fartura de borracharias. Então chegaram os bares, e os pneus foram dando lugar aos copos americanos e às tulipas de chope. Fugi da boemia, mas ela correu atrás de mim.

Cada uma dessas ruas, para além dos diferentes títulos, descrições e enredos, é um espelho onde minha história reluz. O pique-pega sobre o piso de cacos, o puçá cheio de siris ao fim da tarde, os saraus defronte a baía, a luta para subir carregando as compras, o strudel do Bar Brasil, o nascimento de Lia. No emaranhado de fios que aparentemente não se conectam, vislumbro um mapa íntimo. O labirinto que riscamos com nossos próprios passos. Onde tantas vezes nos perdemos e um dia, quem sabe, possamos nos encontrar.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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