Sempre tive um fascínio pela relação das pessoas com seus lugares de afeição. Aqueles que, depois de algum tempo, a gente transforma em casa. Onde basta chegar para que a tristeza pareça menos triste e a alegria, essa matéria baça, ganhe de súbito uma precisão rara.
Já estava em Montevidéu havia dois dias, entre ojos de bife e copos de Tannat. Circulava sem rumo pelas ruas da cidade, insubmisso à cartografia, até o momento em que me deparei com a imponente fachada do Café Brasilero — grafado assim mesmo, sem o “i”. Era minha quarta viagem para a capital uruguaia e não demorei a constatar que nunca tinha entrado ali.
Localizado na Rua Ituzaingó, 447, na Ciudad Vieja, ao longo de sua longa história o Brasilero se transformou num ponto de encontro para artistas e intelectuais. O escritor Mario Benedetti era presença assídua, assim como o cantor Carlos Gardel. Juan Carlos Onetti foi outro freguês rotineiro e o que se conta por lá é que seu referencial romance O poço, publicado em 1939, nasceu no centenário bar.
Onetti gostava do café forte e sem açúcar. Carregava sempre três canetas e um único caderno, onde fazia suas anotações. Certa tarde, ao se ver sem papel, passou a rabiscar o tampo da mesa do Brasilero. No dia seguinte voltaria para transferir para um bloco os apontamentos gravados na madeira. “Ele apagou as palavras com óleo e depois, como estava cansado de pintar e pintar, disse ao então proprietário que lhe vendesse aquela mesa para que pudesse arranhá-la quando quisesse”, relata Santiago Gómez Oribe, atual dono do café.
Mas o cliente mais habitual era mesmo o jornalista e escritor Eduardo Galeano. Por mais de duas décadas, ele bateu ponto no Brasilero. Gostava de chegar pela manhã e, para acompanhar a leitura do jornal do dia, pedia um “cortado” ou uma mistura de café com creme, doce de leite e licor Amaretto, que acabou ganhando seu nome. Se a alma rogava um bocado de álcool, uma taça de vinho tinto resolvia.
“Sou filho dos cafés de Montevidéu. Neles aprendi tudo que sei, foram minha única universidade”, afirmava Galeano.
Nossas obsessões são plantas delicadas que regamos com esmero e dedicação. Tenho as minhas. E se me encanta o vínculo das pessoas em geral com os diferentes cantos da cidade, isso é ainda mais forte quando se trata de escritores. Me apraz conhecer os lugares que falaram ao coração dos autores que admiro. Não por fetichismo, mas pela vontade de entender seus apegos, suas pequenas ternuras.
Daí a decisão de entrar no Brasilero naquela quarta-feira. Encontrei o salão ainda vazio, o que permitiu que observasse os lustres de latão em estilo Art Nouveau, as fotos penduradas nas paredes, as cadeiras e mesas de madeira maciça, o lindo espelho ao fundo do balcão.
Fundado em 1877, o Brasilero oferece jornais impressos aos fregueses, e só isso já me deixou comovido.
Fiz questão de me sentar à mesma mesa em que Galeano costumava ficar, logo na entrada, próxima à janela. A simpática atendente me trouxe um expresso, um suco de laranja e o exemplar do El País. Montevidéu se movia do lado de fora, no andar apressado dos passantes. Do lado de dentro, a cidade pulsava em outro tempo. Um tempo que não é linear. É ontem, hoje, amanhã. Uma espécie muito própria de eternidade.