“Cada geração literária tem um ideal sacrílego. O da de Flaubert e dos Goncourt era destruir Voltaire. O da atual, aniquilar Anatole France. É a eterna guerra contra os deuses”, afirma Humberto de Campos em seu polêmico (e venenoso) Diário secreto. Composto entre 1906 e 1934, o livro registra em minúcias a vida política e editorial brasileira do começo do século passado. Em paralelo, é um delicioso inventário das fofocas que circulavam entre a intelectualidade da época. Mexericos, boatos, intrigas. Que servem de motor a uma prática que os escritores — tanto os de ontem quanto os de hoje — adoram exercitar: a maledicência.
São muitos os casos a demonstrar que, assim como na França de Flaubert e Goncourt, o autor brasileiro é um treteiro do primeiro time. A República ainda era novidade por aqui e o pau já estava comendo. O governo de Floriano Peixoto dividia o país, o que se refletia no meio literário. Articulista contumaz dos diários da então capital, o Rio de Janeiro, e autor do romance O ateneu, Raul Pompeia era um defensor apaixonado do presidente. Já Olavo Bilac se posicionava no campo radicalmente oposto. Chegou a fundar um jornal, A Rua, para combater as políticas daquele que ficou conhecido como o Marechal de Ferro. Em 1892, quando rebenta a segunda Revolta da Armada, o embate deixa o espaço do debate público e vira injúria pessoal.
Pompeia havia defendido a repressão do governo aos revoltosos, e Bilac o acusa de ser um cooptado por ter aceitado a oferta de um emprego de professor na Escola de Belas Artes. O tiroteio verbal começa com o ferino texto do poeta no jornal O Combate. “Talvez seja amolecimento cerebral, pois que Raul Pompeia masturba-se e gosta de, altas horas da noite, numa cama fresca, à meia-luz de uma veilleuse mortiça, recordar, amoroso e sensual, todas as beldades que viu durante o seu dia”, diz. Ao que Pompeia, no Jornal do Commercio, retruca: “O ataque foi bem digno de uns tipos, alheados do respeito humano, licenciados, marcados, sagrados — para tudo — pelo estigma preliminar do incesto”. A maldosa sugestão se referia a um sobrinho de Bilac.
A desavença levaria à marcação de um duelo de espadas entre os dois. Que, a exemplo da Batalha de Itararé, nunca aconteceu. Amigos em comum fizeram o papel do “deixa disso”, mas a querela só se encerraria mesmo com o suicídio de Pompeia, alguns anos mais tarde. Sem ver efetivado o duelo, Bilac acabaria se notabilizando, fora da literatura, por ter protagonizado o primeiro acidente automobilístico da história do Brasil. Em 1897, conduzia um triciclo a vapor Serpollet, importado da França, quando bateu em uma árvore na Estrada da Tijuca. O veículo estava a 4 km por hora.
Com a disseminação das livrarias e dos cafés no Centro da cidade, muitos deles frequentados pelo pessoal do meio, os embates literários se tornaram mais rotineiros. Boa parte desses estabelecimentos se concentrava na Rua do Ouvidor, que se tornou o epicentro da efervescência cultural — e também dos fuxicos da boemia intelectualizada. Por ali passavam João do Rio, Coelho Neto, o próprio Bilac e nomes hoje menos conhecidos, como Demerval da Fonseca e Pedro Rabelo.
João do Rio, aliás, era uma das vítimas preferenciais das detrações. Quando enfim consegue entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1910, recebe do mordaz poeta Emílio de Meneses uma quadrinha que alude à sua homossexualidade: “Na previsão de próximos calores/ A Academia, que idolatra o frio,/ Não podendo comprar ventiladores,/ Abriu as portas para João do Rio…”.
Emílio era um sátiro. Desfilava pela cidade com seu portentoso bigode, buscando matéria para chistes, caçoadas e trocadilhos. Certo dia, foi abordado por um poeta iniciante, a quem não conhecia, e que lhe informou ter escrito dois sonetos. O novato então perguntou se podia ler um deles; o outro viria no dia seguinte. Após a leitura, feita com toda pompa, quis saber o que Emílio achou. “Gosto mais do outro”, ele disse.
Sobre o jornalista e contista Vicente de Carvalho, que tinha apenas um braço, comentaria: “Deixem lá que Deus sabe o que fez. Quando deu um braço só ao Vicente, foi para que este não batesse palma a si mesmo”.
João do Rio, feliz pelo ingresso na ABL, ignorou a provocação de Emílio. Destinou-lhe o mesmo silêncio reservado a Lima Barreto quando este publicou Recordações do escrivão Isaías Caminha. O personagem Raul de Gusmão, claramente inspirado em sua controversa figura, era descrito como de “voz fanhosa, sem acento de sexo”. Em determinada passagem do livro, entra numa hospedaria da Rua da Alfândega ao lado de um fuzileiro naval. Outra vez, uma referência à orientação sexual tida como “desviante”.
No clássico A vida literária no Brasil — 1900, o crítico Brito Broca elenca algumas dessas rivalidades que marcaram nossa belle époque tropical. Mas é no Diário secreto que a “boca maldita” da classe letrada se revela plenamente. O historiador Gilberto Araújo, estudioso da obra de Humberto de Campos, lembra que ele costumava relatar os anedóticos episódios terceirizando a autoria. Nas mais de 800 páginas da obra, dividida em dois volumes, a autoria da detração é quase sempre atribuída a outra pessoa. Quem sugere que Mário de Alencar não era filho de José de Alencar, e sim de Machado de Assis, portanto, não teria sido Humberto, e sim o poeta, cronista e romancista Goulart de Andrade.
Araújo cita outras futricas do Diário. Silva Ramos, fundador da ABL, é qualificado como “um pedaço de deserto, árido, seco e abandonado, que em quase oitenta anos deu apenas duas pequenas moitas de capim”. O médico, escritor e dramaturgo Cláudio de Souza sofre injúria similar: “[Ele] dá-me a impressão de quem escreve com uma pena sem tinta. Quando termina a página, sente-se, para a imaginação, que ela continua em branco”.
Esse período mais inicial do século parece ter sido mesmo mais pródigo em tretas. Mas, embora com menos intensidade, elas continuaram a pintar aqui e ali. Nos anos 1950, por exemplo, Oswald de Andrade e José Lins do Rego trocaram pesadas farpas pela imprensa. A razão, como se pode imaginar, era o ainda quente conflito entre os partidários do Modernismo e aqueles que eles chamavam de “passadistas”.
Oswald se referia a Zé Lins como “o coronel Lula do romance nacional”, alusão a um dos principais personagens do romance Fogo morto. O coronel é um senhor de engenho decadente, mas ainda orgulhoso de sua condição. Atacou também o futebol, que encantava o colega paraibano. Tal esporte seria, para Oswald, um “ardil imperialista” que servia de “lenitivo” à “escassez literária” de Zé Lins.
A resposta veio numa crônica em que o autor de Menino de engenho saúda o velho esporte bretão e, de soslaio, alfineta o jeito aristocrático de seu opositor: “Na verdade, uma partida de futebol é alguma coisa a mais que bater uma bola, que uma disputa de pontapés. Há uma grandeza no futebol que escapa aos requintados”.
Sobra ainda para Mário de Andrade. Segundo Zé Lins, sem citar o nome do autor, a obra Macunaíma seria apenas “um fichário de erudição folclórica”. Mário e Oswald, vale lembrar, foram muito amigos. E o rompimento dos dois se deu justamente devido à língua ferina de Oswald, que o ridicularizava. Estamos falando de um espadachim experiente: tretou com Graciliano Ramos, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça Aranha… A lista é longa.
Outro grande momento na história das brigas literárias brasileiras duraria mais de três décadas, chegando aos anos 2000. De um lado, estava o poeta e tradutor Augusto de Campos. Do outro, o também poeta Ferreira Gullar. O conflito começou durante um almoço no extinto restaurante Spaghettilândia. O motivo: uma discordância sobre qual dos dois teria aproximado Oswald — olha ele aí de novo — dos concretistas de São Paulo.
A escaramuça chegaria às páginas dos jornais, com artigos de parte a parte. O tom, sempre bélico. “Que crédito pode merecer um sujeito tão desligado que chega a mijar na lata de lixo pensando que é vaso sanitário?”, provoca Campos. O rebate de Gullar é igualmente duro: “Augusto, que nunca mija fora do penico, quis retratar-me como um sujeito ególatra e presunçoso, dono da verdade. Pergunto: alguém assim escreveria uma crônica como essa, intitulada Errar é comigo mesmo, confessando suas trapalhadas? Augusto jamais o faria, uma vez que, modesto como é, não erra nunca. Ele e Deus”.
Foram tantas escaramuças ao longo do século 20 que, se quiséssemos mencionar todas, não haveria espaço suficiente. Então, paremos aqui.
No caldo morno da literatura atual, em que quase todas as coisas chãs são ditas à boca pequena, esses bate-bocas rarearam. Houve, aqui e ali, uma discussão, e até um soco certeiro que entrou para os anais, mas a impressão geral é que vivemos em um ninho de virtuosos praticantes de yoga. O remanso tornou o cenário plácido e também meio sem graça.
Até porque, como salientou Machado de Assis, “a maledicência não é tão mau costume como parece”. E não conheço escritor que, na gênese, prime pela humildade. O grande poeta Francisco Alvim resumiu tudo num poema chamado Luta literária. Tem apenas um verso: “Eu que é que presto”.