A ciranda de Lia

Os oito anos da filha em dez breves e afetuosos atos
Ilustração: Eduardo Mussi
11/05/2024

1.
Mamadeira devidamente tomada, Lia está sentada à beira da cama. Tem a testa franzida, parece observar algo, que não consigo distinguir, com a máxima atenção.

— Vamos escovar os dentes? — pergunto, com a escova à mão.

— Espera mais um pouquinho — ela pede.

— O que você está fazendo?

— Pensando.

2.
— Tô com saudade de você

— Você sabe o que é saudade?

— Sei, sim. É quando eu quero estar com você e você não está comigo.

— Mas eu não estou com você agora?

— Tá.

— Então?

— Papai, eu sei e acabou.

3.
De dentro do carro, ela aponta para a Praia de Botafogo.

— Essa aí é suja. Tem cocô. Não pode tomar banho.

— É. Só na outra.

— Vamos lavar? Vamos?

4.
— Será que a Mila vai estar dormindo ou acordada quando a gente entrar em casa?

— Acordada.

— E será que ela vai até a porta falar com a gente?

— Papai, a Mila é uma gatinha. Ela não fala.

5.
No filme que a TV transmite, o nenê chora copiosamente. Lia o observa por alguns segundos antes de comentar, com ar superior:

— Quando eu era bebê, fazia muito escândalo.

6.
— Minha barriga tá doendo.

— Não inventa história, Lia.

— Tá doendo muito!

—Se tá doendo assim, não pode tomar sorvete.

— Passou.

7.
— Papai, pode parar de ser doido?

— Mas você não gosta de maluquices?

— Só algumas.

8.
— Estou muito brava — ela diz, de braços cruzados, os lábios formando o bico.

— Por quê?

— Porque você fez malcriação comigo.

— Eu?

— Mas, olha, se você pedir desculpas, eu vou ficar feliz.

— E eu vou pedir desculpas pelo quê?

— Porque fez malcriação.

— Lia, na verdade você que fez malcriação, e eu chamei sua atenção por isso.

— Fiz. Aí depois você fez comigo.

— Ah, quer dizer que chamar sua atenção porque você fez malcriação é fazer malcriação?

— É. Mas, se você pedir desculpas, eu vou ficar feliz.

— Tá bem, desculpa.

Braços descruzados, me dá um beijo na bochecha e seu OK:

— Agora vamos ver YouTube Kids na televisão?

9.
A noite de Natal se encaminha para o fim. Os pratos já dormem na pia da cozinha e o papel dos presentes cobre o chão da sala quando vem a pergunta:

— Papai, onde eu estava quando você era criança?

10.
— Desculpa.

— O que houve, Lia?

— Dei um arroto.

— Ah, tá.

— Quando a gente dá arroto do lado de uma pessoa, tem que pedir desculpas.

— Pum também?

— Não. Pum não precisa.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho