Um sol todo seu

Um rinoceronte sentado no peito e a descoberta de um amplo espaço para ser escritora
Ilustração: Bruno Schier
03/07/2023

Para Maria Flávia

Já são doze dias fora de casa. São, também, treze dias desde a madrugada em que eu estava deitada no chão do banheiro vomitando um líquido amarelo que era a expressão física e azeda da minha angústia, do meu nervosismo, da minha aflição.

Doze dias longe de casa, a primeira separação do meu filho, uma viagem importante de trabalho, um tempinho com uma parte querida da família. Era muito, tanto, demais. Eu atravessei o oceano com as entranhas revolvidas, um nó naquele lugar em que deveria estar o estômago, um rinoceronte sentado no meu peito, brincando de bola de gude com o que já havia sido, em algum momento, o meu coração.

E aí eu pousei e tudo voltou pro seu lugar. Entranhas, coração, o rinoceronte eu não sei aonde foi. E foi tudo dando certo, o curso em outra língua, as companhias incríveis, o sol que só se punha às nove e meia da noite. E nascia de novo às quatro da manhã e teve um dia que eu tava acordada pra ver isso. Sentindo saudade todos os dias, mas acordada. Viva.

Na minha primeira noite eu perdi uma meia dentro do quarto do hotel e alguém me disse que as meias fazem isso. Não sei se saem sozinhas, se vão ver o mundo, se se escondem em algum lugar. Mas fato é que fazem, elas vão. Eu fui, e perdi outras coisas além da meia, até uns medos. E agora eu tô aqui, olhando a tela que me mostra a que horas eu devo embarcar, com os dedos cheios de vontade de escrever. De trabalhar no meu romance em andamento, rascunhar um conto, inventar um mundo.

A Virginia Woolf, que nasceu bem aqui onde estou, disse que a gente precisa de um teto todo nosso. Um espaço físico, metafórico, uma bandeira fincada em algum lugar para que possamos escrever de verdade, com aquelas entranhas que já apareceram aqui. Eu só não tinha entendido que o teto podia ser o céu, a lua, ou o sol num ângulo diferente.

Você já fechou os seus olhos e virou o seu rosto para o sol de verão?

Deveria.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho