Algumas semanas atrás, um juiz me escreveu para dizer que tinha citado trecho de um texto meu para defender seu voto numa decisão judicial. O processo é sigiloso, mas basta dizer que se trata do caso de uma mulher que foi enganada e manipulada ao longo de catorze anos por um namorado que mantinha um casamento em outra cidade. Nunca imaginei que algo assim pudesse me acontecer: ser citada no voto de um juiz.
Muitas vezes me parece que o ofício da escrita, num tempo como o nosso, é uma futilidade. Um livro não derruba um tirano nem começa uma revolução. Mas tento lembrar de Rebecca Solnit, que escreveu “que não podemos saber se nossas ações são inúteis; que ninguém tem a memória do futuro (…). Os efeitos das nossas ações podem se desdobrar de maneiras impossíveis de prever, ou mesmo de imaginar”.
Uma escritora pensa muitas coisas ao publicar, mas não pensa que vai parar na Justiça (ou até pensa que sim, por outros motivos, sob determinados tipos de governo). E então, de repente, figura num voto a favor de outra mulher.
Solnit, ainda no livro Os homens explicam tudo para mim, continua a dizer que o desespero é a certeza de que o futuro será muito parecido ou pior do que o presente. Gosto dessa aproximação da certeza ao desespero. Apenas quem tenta prever o futuro se desespera com ele. Quem aceita a incerteza como condição inexorável da vida pode até contemplar o apocalipse, mas mantém em aberto a possibilidade de que as coisas não deem tão errado assim. O amanhã, afinal, está sempre na escuridão do dia que ainda não nasceu.
Na cultura aimará, ao contrário do que acontece conosco, o passado é compreendido como algo que está à nossa frente, enquanto o futuro fica para trás. É assim pois o passado é aquilo que já conhecemos: podemos olhar para ele, e só podemos olhar o que está à frente. Já o futuro é um mistério, uma vez que não temos como observá-lo: está às nossas costas.
Um não que ressoa para sempre
Tenho pensado que uma escritora deve agir como o trabalhador alemão que, em 1936, se recusou a fazer a saudação nazista no meio de uma multidão de colegas com os braços erguidos. É hoje uma foto conhecida. Mas, se olhássemos desavisados, poderíamos nem perceber que num canto, mais para trás, no meio de uma horda que grita sim, há um homem que discretamente encarna o não. A foto foi publicada e ganhou notoriedade em 1991, e volta e meia circula como metáfora de resistência.
Em ensaio intitulado Não, Anne Bayer examina a prática da recusa: “A História está cheia de pessoas que simplesmente negaram. Elas disseram não, obrigado, elas deram as costas, fugiram para o deserto, tomaram as ruas vestidas em trapos, moraram em barris, incendiaram as próprias casas, caminharam descalças pela cidade, assassinaram seus estupradores, dispensaram o jantar, meditaram em direção à luz. Até bebês recusam, e os idosos também. Todos os tipos de animais recusam: no zoológico ele nos encaram com olhar de morto através do acrílico, jogam fezes nas faces humanas, param de ter bebês”.
Essas práticas de não conformidade podem ter sido em vão para aqueles que, de fato, as colocaram em ação. Quando o homem da fotografia se recusou a levantar o braço, ele não começou uma revolução. Seu gesto de desobediência não derrubou o governo nazista. Mas aquele homem tampouco pensou que seria reconhecido mais de oitenta anos depois. Quando cruzou os braços, não pode ter imaginado que os estava cruzando para sempre, numa imagem que chega ao século 21 repleta de triste atualidade.
Um passo atrás
Quero voltar à arquitetura do tempo dos aimarás. Aqui, para ir ao encontro do futuro, é preciso caminhar para trás. Assim podemos nos afastar do passado, mas ficar de olho nele ao mesmo tempo. Caminhar para onde não enxergamos, porém, é uma boa fórmula para tropeços. Então me vejo assim: estou dando passos para trás, para o futuro, às cegas. Preciso de ajuda. Quem pode vir em meu socorro? Alguém que esteja diante dos meus olhos, alguém que guie meus passos dizendo cuidado, um pouco mais para a esquerda, siga. Se essa pessoa está à minha frente, ela está no passado. Essa pessoa à minha frente pode ser o trabalhador que observo na fotografia de 1936, e ele continua me instruindo a dizer não.
Quando uma escritora joga suas palavras sobre um terreno hostil, pode ser que elas sequem e morram antes de brotarem, mas também pode ser que ela esteja ajudando a escrever um futuro distante. Assim como é da arte desconhecer suas origens, não se pode pretender conhecer seu destino.
A mulher que entrou na justiça contra o homem que a enganou por catorze anos perdeu o caso. É um final triste para essa história. Entretanto, talvez não seja o final.