Há alguns dias, fiz um tratamento de canal. Foram duas horas e meia na cadeira do dentista. Isso parece que não tem nada a ver com literatura, mas tem. É que fiquei 150 minutos numa solidão imensa. Não podia falar, ler, olhar o celular… nada. Éramos só eu e eu. Então decidi lembrar de coisas boas. Poderia rever mentalmente os melhores momentos do Santos ou, quem sabe, da minha vida sexual. Dois bons testes de memória. Mas, como tinha que escrever este artigo, decidi lembrar dos meus melhores momentos na literatura.
De cara, pensei no Jabuti que ganhei com meu primeiro livro: O Chalaça. Mas, quando fui consultar minha memorioteca, vi que não tinha ido à premiação.
Como essa cena não estava disponível, fui buscar outras. E, para minha surpresa, em todas elas eu estava falando com leitores. Na maioria das vezes, crianças.
Lembrei, por exemplo, da primeira vez que fui a uma escola municipal, em 2003. As crianças tinham lido Uma história de futebol, meu primeiro infantojuvenil, e a direção do colégio me convidou para falar com os leitores.
Achei aquilo estranho, porque não sabia que escritores iam às escolas. Mas, no dia marcado, peguei meu Uno Mille e fui para lá.
Daí veio a surpresa: pensei que seria uma conversinha com vinte alunos. Mas, assim que entrei no pátio da escola, centenas de crianças me cercaram e me abraçaram.
E não foi só isso. Eles tinham feito desenhos sobre o livro, textos derivados do enredo, um campeonato de futebol com as equipes da história etc.
Achei bom demais! Até então, eu era um escritor para adultos, com três romances de sucesso, que tinham passado dos 60 mil exemplares. Mas aquilo foi muito mais emocionante. Tanto que hoje visito umas 50 escolas por ano. E já tenho mais livros para crianças do que para adultos (35 x 30).
Para não ser injusto, ressalto que também houve boas conversas com adultos. Na Jornada Literária de Passo Fundo — o melhor modelo de encontro literário que já houve no país (tá, a Flip é legal, as bienais são populares e a Feira do Pacaembu é charmosa, mas a Jornada era demais!) —, fiz uma palestra com Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura. Foi inesquecível. Pelo menos para mim. Além de estar ao lado de dois bambambãs, havia umas três mil pessoas no circo. E a maioria tinha lido nossos livros (porque a Jornada previa a leitura prévia dos autores convidados).
Feito o aparte aos adultos, digo que a maior parte das memórias veio das escolas mesmo.
Não esqueço uma encenação de Uma história de futebol; uma entrevista em que estava numa cadeira giratória, cercado por jornalistas mirins; um podcast bacanérrimo; um desfile de cabelos malucos por conta de Os penteados de Rapunzel; uma escola que fez castelos gigantes com caixas de papelão e garrafas PET; outra em que houve um leituraço em que fui lido em todas as classes por professores fantasiados de personagens; outra que enfileirou cem maquetes de castelos; outra que fez uma ponte de verdade, na qual os alunos subiam e tiravam fotos; outra que fez bonecos enormes de Nuno, Nonô e Naná; outra que fez um monte de sapatinhos inspirados em Os oito pares de sapatos de Cinderela; um gigantesco pé de feijão em que cada feijão era, na verdade, a história de uma criança; sacisas pulando num pé só etc.
Ou seja, descobri que, para mim, a coisa mais divertida no escrever é encontrar as crianças, os professores e ver no que foram transformados meus livros.
Não lembro se foi o Zuenir ou o Verissimo, mas um dos dois disse que “o melhor de escrever é ter escrito”. Na época, não entendi muito bem. Hoje, acho que entendo.
De qualquer modo, aquelas lembranças fizeram com que os 150 minutos de tortura ontológica e odontológica passassem rapidinho. Se não fosse pelo som da broca, teria sido até agradável.
Mas ainda terei mais uma sessão para tratamento de canal. Serão mais duas horas. Como já gastei as memórias literárias, vou ter que pensar em outra coisa. Sim, nos gols do Santos, é claro.