Gosto muito de Italo Calvino. Acho tudo o que ele fez muitíssimo bom. Inclusive uma série de textos (feita para conferências que ele daria em Harvard) na qual ele listou cinco valores literários que julgava fundamentais. A saber: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Haveria ainda um sexto texto, mas ele morreu antes de fazê-lo.
Arrisco, sem medo de acertar, que a derradeira virtude seria: “surpresa”.
Os monótonos que me perdoem, mas surpresa é fundamental. Ler um texto sabendo o que vem a seguir não tem muita graça.
É bom avisar que não estou propondo enredos lisérgicos, onde os personagens fazem coisas absurdas o todo tempo. Isso às vezes dá certo, como em O mochileiro das galáxias, de Douglas Adams, mas é raro. Geralmente os enredos muito malucos acabam sendo malucos demais e me expulsam do livro.
Há, porém, outros modos de surpreender.
Um deles é fazer uma estrutura pouco convencional, na qual o leitor não saiba o que vem a seguir. Talvez você tenha pensado em O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, no qual os capítulos podem ser lidos em ordens diferentes; ou em Ulisses, de James Joyce, onde cada capítulo segue um estilo literário. Mas nem precisamos ir tão longe. Uma simples alternância de narradores já pode bastar. Recursos visuais, como fez Laurence Sterne em A vida e as opiniões do cavaleiro Tristram Shandy, com suas páginas negras, marmorizadas e com desenhos que descrevem o percurso narrativo do livro, também servem.
A surpresa pode estar na estrutura, como num livro bem interessante que estou lendo agora: O pai da menina morta, de Tiago Ferro. Ele é uma espécie de mosaico ou almanaque, misturando formas de narrar e linhas narrativas. Assim, ao acabar um capítulo ou virar uma página, você não sabe o que vem a seguir. Mas está tudo bem amarrado pelo enredo central e pelo narrador único, o que impede o leitor de se perder.
Outra coisa que pode trazer surpresas é a sinceridade. Ou, para falar em termos mais pomposos, “a-profundidade-psicológica-das-personagens”. Há isso em O pai da menina morta e em outro ótimo livro sobre paternidade: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Entender o que realmente pensa uma pessoa, como se descascássemos uma cebola, traz muitas surpresas. Ainda mais em dias de politicamente correto, onde as personagens têm que cumprir certas rotas, dizer certas coisas e pensar certas ideias, trocando-se a profundidade psicológica pela superficialidade ideológica. A sinceridade absoluta talvez seja o que tanto seduz em Clarice Lispector e na chamada autoficção, quando bem realizada.
Pode parecer paradoxal, mas os clássicos são uma boa fonte de surpresas. O antigo ensino escolar de literatura me deu a impressão de que “clássico” era algo do tipo arroz-com-feijão, algo que não inventa nada de diferente. Nada mais equivocado. Talvez o clássico tenha se tornado clássico justamente por trazer uma surpresa nunca vista. É só pensar nos dois maiores clássicos brasileiros: Memórias póstumas de Brás Cubas começa avisando que seu narrador é um defunto, o que deve ter causado vários queixos caídos na época. E Grande sertão: veredas, além de uma linguagem com surpresas a cada frase, tem um final que deve ter arregalado muitos olhos.
Algo que talvez esteja diminuindo a produção de surpresas são os manuais, que começaram sendo sobre roteiros cinematográficos e hoje se espalham também pela literatura. Claro que conselhos podem ajudar, mas as fórmulas de como contar uma história acabam tornando as narrativas muito iguais. O manual automatiza soluções. E checar a todo momento se você está realmente seguindo os passos da “jornada do herói” pode atrapalhar a jornada do escritor.
Enfim, a surpresa nos dá um certo prazer infantil de ver algo novo. Como diria meu filho de nove anos, “a surpresa dentro do Kinder Ovo deixa o chocolate mais gostoso”.