Sete mandamentos para receber um escritor na escola

A leitura do livro é, obviamente, essencial, mas há muitas outras iniciativas para tornar a conversa com o autor mais proveitosa
Ilustração: Eduardo Mussi
08/09/2024

Nos meus tempos de infante, nenhum escritor visitou minha escola. Eu tinha certeza de que os autores de textos dos meus livros de português estavam todos mortos (e na maioria das vezes estavam mesmo).

Mas, hoje, a visita de um autor não é nada excepcional. Ano passado falei com alunos de 68 escolas diferentes e este ano já tenho mais de 50 agendadas. Porém, devo perder de longe para nomes como Leo Cunha, Jonas Ribeiro e Daniel Munduruku.

As visitas se tornaram algo quase comum, mas ainda estão muito diferentes entre si. Umas são mais proveitosas, outras, menos. Falta uma deontologia, uma mínima normatização. Por isso resolvi fazer estes “Sete mandamentos para receber um escritor na escola” (eu sei, deveriam ser dez, mas hoje à tarde fui a uma escola e minha energia já está na reserva).

• Primeiro mandamento: “Lerás o escritor antes de todas as coisas”.
Parece óbvio, mas não é. Muitas vezes somos chamados para falar sobre nossa vida. Porém, a rotina do escritor é a coisa mais sem graça do mundo. Se o cara não é um Hemingway ou um Bukowski, sua existência se resume a ficar horas sentado na frente do computador: lendo, escrevendo e reclamando de dores nas costas.

Quando conto minha vida, as crianças bocejam tanto que vejo um desfile de caninos e molares. O escritor tem que falar dos seus livros para quem leu seus livros. Só assim a conversa fica minimamente interessante.

• Segundo mandamento: “Preparás uma entrevistinha”.
Mesmo que os alunos tenham lido o autor, é importante não deixar a conversa dependendo apenas do improviso. Preparar uma entrevista tem duas utilidades: ensina a criança a pesquisar e o perguntador tem que pensar um pouco mais nos livros. A preparação de uma entrevista deixa a conversa mais organizada e informativa.

• Terceiro mandamento: “Criarás textos”.
Só ler um livro com atenção e falar com seu autor já é uma coisa boa. Mas fica ainda melhor se os alunos produzirem textos a partir dessa leitura. Isso significa que a criança realmente tomou posse do texto, tanto que se sente capaz de modificá-lo. Além disso, a invenção é tão prazerosa quanto a leitura. Uma escola em que fui recentemente, por exemplo, criou ótimas novas histórias a partir de Contos de Sacisas. E já vi chapeuzinhos de todas as cores a partir de Chapeuzinhos coloridos.

• Quarto mandamento: “Criarás algo além de textos”.
Só fazer um texto a partir de uma leitura já é uma coisa boa. Mas a coisa fica ainda melhor se as crianças transformarem o livro em outra linguagem. Isso provoca uma interdisciplinaridade e abre as portas da imaginação. Por exemplo, no final do semestre passado, uma escola que leu Pontes construiu uma inacreditável ponte de verdade no meio de uma sala de exposição e criou sofisticadas animações computadorizadas (sim, era uma escola rica, mas há várias escolas ricas que apenas leem o livro, sem produzir algo novo). Noutra, que leu o Castelos, cada classe construiu um enorme castelo, onde uma pessoa (não muito alta) podia até entrar (obs.: essa não era uma escola rica, mas uma EMEF da periferia de São Paulo, que usou materiais recicláveis, como caixas e garrafas pet para fazer incríveis castelos). Numa outra, que leu Os penteados de Rapunzel, houve um divertidíssimo desfile de cabelos malucos. E já vi muitas e variadas representações teatrais de Chapeuzinhos coloridos.

Talvez ver nosso texto traduzido para outra linguagem seja o que há de mais divertido para o autor. A gente se sente um pouco pai da coisa, mas um pai surpreso, que não esperava que o filho fosse tão longe.

• Quinto mandamento: “Não exigirás demais do autor”.
Em geral os escritores não estão acostumados a grandes dispêndios de energia. Seu exercício é, vez ou outra, ir até a cozinha pegar uma paçoquita e um café. Já os professores são verdadeiras usinas de energia. Conseguem falar horas com crianças, argumentando, andando, prendendo sua atenção. Só que isso acaba com os reles mortais. Eu, por exemplo, depois de uma tarde numa escola, costumo voltar roncando no táxi para casa.

Ou seja, não se pode colocar o autor falando para três turmas seguidas. Na terceira ele já estará respondendo apenas monossilábicos “sins” e “nãos”. Ou roncando.

• Sexto mandamento: “Providenciarás rodas para o autor”.
É de bom tom providenciar o transporte do escritor. Afinal, o cara pode estar vindo de longe. Pode ser um táxi, a carona de um professor ou o reembolso da gasolina. O que não pode é deixar o pobre escritor no prejuízo. Aliás, se tiver um cachezinho, também é justo.

• Sétimo mandamento: “Um chocolate não faz mal a ninguém”.
Talvez aí eu já esteja pedindo demais, mas é bom não deixar o autor passar fome. Alguns ficam muito mal-humorados quando isso acontece (sim, é o meu caso). Mas nem precisa ser uma barra de chocolate suíço folheado a ouro. Uma coxinha já está valendo. Sem falar que um lanche com o autor pode ser um bom momento para os professores conhecerem o sujeito, fazerem perguntas que serão usadas nas aulas, explicarem como foi o uso do livro em sala de aula etc…

Enfim, as visitas de escritores já são algo comum, mas podem ser melhor aproveitadas.

Aliás, o que importa mesmo é o trabalho feito antes da ida do autor à escola. O encontro final é apenas a cereja do bolo. A massa, o recheio e a cobertura são o que os professores fazem com os livros do autor antes do autor chegar. E isso tem melhorado a cada dia.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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