Os últimos dias de um livro

A tristeza de perceber que ser bom não garante uma vida mais longa a determinado livro
Ilustração: Eduardo Mussi
09/02/2025

Depois dos sessenta anos, a coisa mais comum são as despedidas. Não só porque você passa a frequentar mais velórios que aniversários, mas porque passa a se despedir de partes de você (como alguns dentes, apêndice, amigdalas, vesícula, etc…).

O que eu não esperava era ter que despedir de meus livros.

Agora que sou editor de várias das minhas próprias obras (o quê? Você nunca ouviu falar na Padaria de Livros?), terei que praticar a eutanásia em algumas delas.

É que, quando o estoque de um livro colorido chega ali pelos duzentos exemplares, há que pedir uma nova impressão (livros em P&B podem ter edições digitais decentes, baratas e pequenas). Mas há obras que não serão reimpressas. Elas estão com os dias contados. Ou, no caso, com os exemplares contados.

São livros que vendem tão vagarosamente que uma nova edição só ocuparia espaço no depósito (leia-se: “minha sala”).

Quando for embora o último exemplar de um desses títulos, acabou. C’est fini. Babau.

O pior é que, às vezes, estes livros que recebem a pena de morte são bons. Por exemplo, O amor é animal! tem ilustrações lindas de Miki W., e o texto fala sobre os diversos tipos de amores entre os animais. Mas contar que há seres que não têm apenas um parceiro e que às vezes este parceiro não é do sexo oposto virou uma blasfêmia.

Esse livro jamais foi adotado por uma escola privada (nota de elogio e espanto: a Prefeitura de São Paulo comprou uns dois mil exemplares para as salas de leitura), porque os professores não vão querer comprar uma briga com pais reacionários. Se bem que a censura também vem dos lados pretensamente modernos. Tente, por exemplo, sugerir a leitura de um livro de Monteiro Lobato para você ver.

Na mesma situação de O amor é animal! está a história em quadrinhos Super-Zé. Eu gostaria de ter lido um livro desses na adolescência, com um herói meio torto, que percebe que superpoderes não são grande coisa e tenta fundar um partido político. Mas, pelo visto, as HQs que adaptam grandes romances brasileiros são as únicas que têm vez nas salas de aula.

Pois bem, depois de fazer a biópsia (ou bibliópsia) desses livros, decidi que eles não serão reimpressos. Seria perda de tempo, de dinheiro e de espaço na sala.

É triste perceber que a vida de um livro não é necessariamente mais longa por ele ser bom. Assim como uma pessoa não vive mais por ser boa.

A natureza e o mercado não ligam muito para meritocracia. Ou talvez até liguem, mas é uma meritocracia que privilegia a herança genética. E nos dois casos.

Enfim, espero que estes dois livros tenham últimos dias agradáveis e que caiam nas mãos de bons leitores. O certo é que, em breve, eles não estarão mais vivos nos catálogos. Serão acessíveis apenas nos sebos, uma espécie de centros espíritas para livros desencarnados. Ou, no caso, desencatalogados.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho