O livro e a foto kirlian

O autor decide relançar “O Chalaça” e prevê um retumbante fracasso nestes tempos que dão as costas ao romance histórico e ao humor na literatura
Ilustração: Thiago Lucas
10/03/2024

Lembro que, quando nasciam minhas primeiras espinhas no nariz, vi uma reportagem no Fantástico sobre o método kirlian de fotografia, que media a aura das coisas. Pois bem, se tirássemos fotos kirlian dos livros, veríamos que cada um tem uma aura diferente. Umas são opacas, quase invisíveis, outras parecem uma aurora boreal.

Há vários fatores que ajudam um livro a ter uma aura mais, digamos, fosforescente. Por exemplo: ser o primeiro livro do autor, falar sobre o assunto do momento, alguém famoso citar o livro (lembra do vídeo da Jout Jout sobre A parte que falta?), ser censurado pela direita, o autor já ser conhecido por outra atividade, etc…

Agora, por exemplo, vou relançar meu primeiro livro, O Chalaça, e sei que será um fracasso retumbante, porque ele terá uma aura mais apagada que prova de mimeógrafo (peço desculpas aos jovens leitores por minhas metáforas, que são do tempo do Guaraná com rolha).

Para começar, não é um lançamento, mas um relançamento, e não ser novidade é um pecado mortal. Mesmo que o livro tenha sido reescrito e esteja bem melhor, vão considerar o coitado apenas uma marmita requentada, não um prato original.

Outro motivo desaurificante: dessa vez, o livro será assinado por dois autores. Há uma crença de que uma obra literária é a alma do autor transformada em tinta e papel. Ou seja, algo totalmente pessoal. Trata-se de um exagero. Todo livro tem revisores, designers, editores, leitores críticos, capistas e mais um tanto de gente que influencia o resultado final. Mas, mesmo assim, uma obra escrita em dupla (no caso, com Marcus Aurelius Pimenta) faz com que o livro perca um tanto de sua aura. Às vezes presta-se mais atenção à autoria do que à obra. Muitas vezes.

O gênero também não ajuda. Quando O Chalaça foi lançado, em 1994, o romance histórico era algo charmoso. Pouco antes, O Boca do Inferno, de Ana Miranda, tinha feito um sucesso estrondoso, recebido prêmios e vendido um tantão de exemplares. Hoje, tempo estranho em que se pensa que a ficção histórica deve dizer apenas a verdade e nada mais que a verdade (como se ela existisse), o romance histórico está em baixa, e livros de jornalistas, como Laurentino Gomes e Eduardo Bueno (que são excelentes), ocuparam seu espaço.

O personagem principal é outro problema. Quem quer saber sobre a vida do Chalaça, que foi uma espécie de Mauro Cid ou PC Farias de D. Pedro? Ninguém. Olhando a lista dos mais vendidos no Publishnews, vê-se que, entre os cinco primeiros colocados na lista geral, há um livro sobre religião e quatro sobre autoajuda empresarial. Ou seja, Deus e semideuses é que estão na moda. O pessoal não quer mais saber de personagens secundários.

O humor também não está em alta. Você se lembra do tempo em que Millôr e Luis Fernando Verissimo eram os bambambãs? Pois, agora, entre os vinte livros da lista de ficção do Publishnews, não há unzinho que possa ser classificado como “de humor”. Nem mesmo “com humor”. O Brasil vem se tornado um país mais carrancudo. Talvez seja a chegada da maturidade. Talvez seja prisão de ventre.

Para jogar a última pá de terra, o livro não será relançado pela Companhia das Letras, como da primeira vez, mas pela modestíssima Padaria de Livros, que tem sua sede no lado esquerdo de minha bagunçada mesa.

Enfim, em maio O Chalaça fará 30 anos e será relançado. Ele estará melhor do antes (na época, ganhou o Jabuti de romance e o Livro do Ano na categoria ficção), mas, por conta da falta de aura, a nova edição será um fracasso.

— Então por que gastar tempo com ele? — pergunta o prático leitor.

— Porque é um bom livro — responde o tolo autor/editor. — Não deveria bastar?

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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