O botox que virou transplante

Autor resolve dar uma “mexidinha” em romance sobre os vermes da política, mas processo vira um terremoto
Antes, os congressistas tinham nomes de animais. Agora eles têm belos nomes de vermes
07/11/2020

(08/11/20)

Escrever é reescrever. Depois rerreescrever. Depois rerrerreescrever. E assim por diante. Pelo menos para mim. Sei que há escritores que vomitam seus textos num só jorro. E tenho muita inveja deles. Tanto que até tentei imitá-los. Mas foi um fracasso. Tive que engolir o tal jorro e digeri-lo de novo. Fiquei com um gosto amargo na boca.

Em geral um autor reescreve um livro várias vezes antes de lançá-lo. Mas agora estou fazendo algo diferente: estou reescrevendo um romance que foi publicado em 2002: Os vermes. É isso, e os bastidores disso, que gostaria de contar aqui.

Os vermes foi feito a quatro mãos com Marcus Aurelius Pimenta e vendeu cerca de dez mil exemplares. Ou seja, teve uma vida comercial decente. Não fantástica, mas decente. É uma ficção sobre política. Para recolher material para o livro fui algumas vezes a Brasília falar com congressistas de direita e de esquerda, e entrevistei muitos jornalistas especializados. O narrador é um verme que mora dentro de um senador. Ele conta sua vida e as tramas de seu hospedeiro.

Escrevemos o livro por mais de dois anos e só o entregamos quando achamos que ele estava pronto. Mas, uns quinze anos depois, eu o transformei num roteiro de longa-metragem e tive muitas ideias nesse processo. Por outro lado, ou pelo mesmo, o Brasil e sua vida política mudaram um bom tanto nestes dezoito anos. Por isso, eu e Marcus resolvemos dar uma “mexidinha” no livro. A editora aceitou a ideia e teremos nova capa, nova impressão, etc…

Mas a “mexidinha” virou um terremoto. As mudanças foram muito mais profundas do que imaginávamos.

Por exemplo, o antagonista, que era um homem, transformou-se em mulher. Em 2002 nunca havíamos tido uma mulher como presidente. Anos depois Dilma foi eleita, reeleita e sofreu um golpe. Ou seja, o que seria inverossímil, uma mulher no cargo mais alto da nação, tornou-se arroz com feijão. A oposição entre um homem e uma mulher ficou bem mais interessante. Além disso, fizemos uma operação de troca de sexo também de algumas personagens secundários. É claro que essa mudança vem na esteira de uma valorização das personagens femininas. E não é algo politicamente correto ou bom-mocismo. É uma adaptação ao tempo.

Outra mudança: transformamos o mais importante personagem secundário, um outro senador, em filho do protagonista. Isso trouxe um ganho enorme. A proximidade e a pré-história entre os dois cresceram muito. Agora há uma história subterrânea sobre a relação entre eles. Surgiram novos laços afetivos (e odiativos).

Mais uma mudança importante: a esposa do personagem principal, que morria no meio do livro, agora morre antes da nossa narrativa. Antes, sua morte atrapalhava o andamento da trama principal. Era uma pedra no meio do caminho. Agora retiramos a pedra, mas a usamos como fundação. É que acrescentamos vários flashbacks que contam a história de amor do protagonista com sua esposa, de modo que ela ficou bem mais importante e ativa. Além disso, ela deixa de atrapalhar a aproximação entre o personagem principal e uma outra mulher. Agora não é mais uma traição, mas um amor de viúvo, e assim também antipatizamos menos com o personagem principal.

Também trocamos os nomes de todos os personagens. Antes, os congressistas tinham nomes de animais, como Dromedário, Hipopótamos, etc… Agora eles têm belos nomes de vermes. Ornou muito mais com o resto do livro. Não sei como não pensamos nisso antes.

Em relação ao estilo, é interessante ver que tiramos algumas invenciones (não todas). Na época, elas eram divertidas. Mas envelheceram. Isso acontece bastante: muitos recursos estilísticos, que parecem criações brilhantes no tempo da escrita, tornam-se penduricalhos de mau gosto. São uma espécie de pochetes literárias.

Também trocamos o espaço no qual acontecem algumas ações. Por exemplo, havia um diálogo que acontecia durante um jogo de futebol. Trocamos isso por um estande de tiro. Ficou muito mais apropriado, pois quem fala com o protagonista é um ex-militar que representa o lobby das armas. Aliás, antes o personagem não representava os interesses a indústria armamentista. Atualizamos isso e algumas outros detalhes da política, que ficaram mais visíveis nesta era bozozoica.

Creio que Os vermes, com todas essas trocas e supressões, ficará umas dez páginas menor. Talvez vinte. Deixar um texto descansar mostra que algumas palavras, parágrafos, às vezes capítulos inteiros, eram barrigas desnecessárias. Mas é claro que algumas barrigas são tão divertidas que acabam sobrevivendo, mesmo que não façam a história andar.

Em resumo, o que fizemos até agora foi: 1) Reforçar os laços entre os personagens; 2) Criar um passado mais sólido à narrativa; 3) Tirar recursos estilísticos que caducaram com o tempo; 4) Reforçar as personagens femininas; 5) Trocar espaços; 6) Atualizar subtemas; 7) Cortar o que fosse cortável.

Nossa esperança é que Os vermes fique bem mais interessante. Ainda mais agora que os conhecemos melhor.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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