Não mexam na minha gorjeta

Em alguns contratos, nem mais os sagrados 10% de direitos autorais estão garantidos aos escritores
10/09/2023

Dez por cento não é muito. É, por exemplo, a gorjeta do garçom. E é também quanto, em geral, recebe o autor da venda de cada um de seus livros.

Quando vou numa escola, quase sempre as crianças me perguntam quanto ganha um escritor. E acham muito estranho quando digo que recebo só 10% de um livro. 10% que é divido com o ilustrador e o outro autor, caso seja um livro em dupla (como é o caso da maioria dos meus infantis). Eles fazem as contas e veem que dá uns dois reais por livro. Acho que mais de uma criança já desistiu da carreira literária ao escutar isso.

Eles não imaginam que na cadeia de produção de um livro há que se pagar a livraria, a distribuidora e a editora, que por sua vez tem que arcar com os custos de impressão, diagramação, divulgação, etc…

No mercado do livro, todo mundo acha que ganha pouco. Os números são muito apertados, as margens são pequenas. As porcentagens de cada um foram sendo afinadas com o tempo e, no Brasil, chegamos aos 10% para o autor, um número que era sagrado.

Era.

Porque, ultimamente, muitas editoras, pequenas, médias e grandes, tentam mexer nesses 10%. E de vários jeitos:

Há editoras que ligam para os autores e pedem para mudar contratos em vigência. E, se você não topa, talvez seu próximo livro não saia por aquela editora.

Ouvi casos em que a editora manda o contrato para renovação automática com a porcentagem de autor diminuída. Se você não presta atenção…

Outras tentam impor contratos com ganhos menores no caso de editais públicos. Mas deveria ser o contrário. O autor deveria receber mais nesse caso, porque, quando ganha um edital, a editora elimina o custo da livraria, às vezes também o da distribuidora e paga menos pela impressão (se, numa tiragem de mil livros, cada unidade custa R$ 12, numa tiragem de 10 mil livros, o preço cai para uns R$ 7). É claro que os editais não pagam o preço de capa às editoras. Há um deságio que, nos casos das prefeituras de São Paulo e Belo Horizonte, pode chegar a 60%. Mas pergunte a qualquer editor se ele prefere vender pelo modo tradicional ou ganhar um edital. Ele nem vai piscar. E digo isso de cadeira, porque também tenho uma pequena editora (que paga, no mínimo, 12% de direitos autorais).

Se os autores já sofrem, os ilustradores, mais ainda. Antigamente eles ganhavam um cachê, sem porcentagem das vendas. Passaram a receber 2% da venda (geralmente tirados dos autores e não das editoras), mas recentemente há quem tenha diminuído essa porcentagem para 1% (sem que o outro 1 ponto percentual volte para os autores). E amigos ilustradores dizem que há casos em que nem há mais esse simbólico 1%.

Esse é um mercado com poucas mudanças. Talvez as grandes novidades recentes tenham sido a Amazon e as vendas diretas pelos sites das editoras. Foram modificações ruins para as livrarias, mas boas para as editoras, que pagam menos na Amazon (cerca de 20%) do que pagariam para colocar seus livros na livraria. E menos ainda no site próprio.

Ou seja, se houve um ganho, foi das editoras. Por outro lado, recentemente a impressão ficou um tanto mais cara. Mas espera-se que seja algo passageiro.

A questão é que sempre houve um pacto entre editoras e autores. Algo do tipo “eu ganho pouco, você ganha pouco, mas a gente está do mesmo lado”. Porém, a tentativa de algumas editoras de avançar sobre os sacrossantos 10% do autor quebra essa relação simbiótica. Acho que os autores têm que bater o pé e não aceitar essa nova situação. Até já imagino alguns cartazes para nossa manifestação:

“Precisamos de um Sindicato de Letras, não de uma Academia!”;

“A gente não quer só letras. A gente também quer números!”;

“Não é só pelos 10%!”;

“Lutaremos com sangue, suor e tinta!”; e, é claro:

“Não mexam na minha gorjeta!”.

Voltando à seriedade, a AEILIJ (Associação dos Autores e Ilustradores de Literatura Infantojuvenil) até já prepara um seminário sobre o assunto. E provavelmente a UBE (União Brasileira de Escritores) também fará parte dele. E isso é muito importante. A sobrevivência da literatura passa pela sobrevivência dos autores, que têm o péssimo costume de fazer três refeições diárias.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho