Falanges de Solanges

Os atuais censores são autoproclamados sábios, que adivinham as futuras consequências de uma leitura e decifram as subterrâneas intenções de um autor
Ilustração: FP Rodrigues
14/07/2024

Quando se fala em censor, o primeiro nome que me vem à cabeça é Solange Hernandes. Ali pelos meus dezoito ou vinte anos, quando o certificado da Divisão de Censura de Diversões Públicas surgia na tela do cinema, lá estava a assinatura da chefe da DCDP, “a dama da tesoura”. Segundo a historiadora Beatriz Kushnir, Solange censurou, total ou parcialmente, 173 filmes, 42 peças de teatro, 87 capítulos de novelas e 2.517 letras de música.

A ditadura militar acabou em 1985 e o cargo de censor acabou oficialmente em 1989. Mas vários amadores tomaram a função para si. E alguns desses atacaram recentemente o livro O menino marrom, de Ziraldo.

Talvez você já saiba o motivo. Se sim, vá para o parágrafo seguinte. Se não, vai aqui o resumo da polêmica cena do livro: dois amigos pegam uma faca para cortar os pulsos e fazer um pacto de sangue. Mas a trocam por um alfinete para furar a ponta do dedo. E, por fim, decidem que basta sujar o dedo com tinta e assinar o nome num papel.

Alguns “expertos” alegaram que, por conta dessa página, as crianças poderiam cortar os pulsos. E assim, com essa alegação tola, proibiram o livro. É mais ou menos como vetar a leitura de Branca de Neve porque as crianças podem tentar envenenar maçãs.

Parece apenas uma enorme burrice. Mas não acredito que seja uma burrice natural. Acho que se trata de uma burrice proposital. Os leitores/censores (doravante chamados apenas de “censores”) preferiram ler desse jeito. Trata-se de uma opção marketingológica.

E quem são essas novas solanges? São autoproclamados sábios, que dizem o que é certo ou errado, que adivinham as futuras consequências de uma leitura e decifram as subterrâneas intenções de um autor. Podem ser pais, políticos, jornalistas, escritores (sim, há escritores censores), professores ou patrióticos cidadãos de bem. E podem ser de esquerda ou de direita. Antigamente, no Brasil, eles estavam exclusivamente na direita, mas hoje a coisa se espalhou: mesmo na esquerda há grupos de donos da verdade, que lucram com a censura.

Lucram? Sim. Um censor coloca-se como um guardião de valores maravilhosos, que podem ser morais, políticos, religiosos etc… E isso é algo muito lucrativo. Rende likes, tapinhas nas costas, votos (podem reparar, sempre há um vereador envolvido nas censuras: ou chega no começo, ou vem depois, pegando carona) e reais. Muitos reais. Hoje, o censor consegue monetizar sua censura, porque é convidado a dar palestras, escrever livros, ter canais no Youtube, ser comentarista, dar cursos etc… Não é à toa que censura atrai tantos oportunistas.

Ziraldo é o mais novo censurado, mas há muitos outros. Principalmente na literatura infantil. Ela merece especial atenção das novas “damas da tesoura”, porque não há nada mais nobre do que dizer que está “protegendo as crianças”.

As recentes falanges de solanges se postam como zeladoras da infância, como se os pequenos fossem seres incapazes de ler e julgar. E acabam fazendo leituras propositalmente burras, como essa do pacto de sangue.

Mas não passa de um pacto de burrice. Ou, talvez, de esperteza.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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