Como fazer amigos em linchamentos

Dicas imprescindíveis para se portar bem em linchamentos, apedrejamentos e outros eventos sociais
Ilustração: Bruno Schier
11/02/2024

I
Antes de mais nada, jamais comece um linchamento sozinha. Nãnanina! Um linchamento é uma celebração, uma festa, algo para ser usufruído em grupo. Não se trata de um prazer solitário. Há que chamar uma amiga ou um amigo. Se possível, mais de um. Ou, melhor ainda, uma turma. Mesmo porque, se você começar no um-a-um, há grande chance do linchamento se tornar apenas uma briga, e ninguém que seja um pouco esperto quer entrar numa luta com apenas 50% de chance de vitória. Por isso, combine antes. Convoque as pessoas do bairro, do bar, do grupo de estudo, do zap-zap. A hora de apedrejar também é a hora de dar as mãos.

II
Se você chegou atrasado e a coisa já começou, jogue uma pedra maior do que as que estão usando. Quem chega tarde num linchamento, depois que o sangue já começou a escorrer, tem que mostrar que não estava em dúvida quanto à validade do ato (ver mandamento III). Portanto, arranque um paralelepípedo da rua e mande brasa!

III
Neutralidade? Nunca! Lembre-se: se você não atirar nenhuma pedra, se você passar pelo outro lado da calçada assobiando com as mãos nos bolsos, pode parecer que está a favor do linchado. E, se você está a favor do linchado, também merece ser linchado. Portanto, mãos à obra.

IV
Não pergunte o que o linchado fez, pergunte o que o linchamento pode fazer por você. Ou seja, não entre na turba querendo detalhes sobre a causa da surra. Essa é a hora de você socializar e de se mostrar integrado, não de questionar. Mas fique tranquilo, você vai colher os frutos dessa integração. Quem participa de um linchamento passa a fazer parte de uma comunidade poderosa. A ignorância convicta valerá a pena.

V
Convoque os passantes. É importante chamar as pessoas ao redor para o linchamento. Mesmo os desconhecidos. Ou melhor, principalmente os desconhecidos. Quem é que não gosta de tirar uma lasquinha numa agressão? Os anônimos vão pegar gosto pela coisa e participarão espontaneamente do próximo evento.

VI
Rugas não são desculpa. Mesmo que você já tenha certa idade, não se abstenha de participar. Atire sua pedrinha. Talvez ela não saia com tanta força, mas você pode dar um lustro à coisa falando dos linchamentos antigos dos quais participou, contando alguns apedrejamentos históricos, recitando umas teorias sobre o linchar etc… O importante é não parecer neutrão, indiferente. E não se subestime. Um idoso num linchamento é importante, dá mais credibilidade à coisa. Além disso, atirar pedras sempre é um bom exercício contra a artrite.

VII
Por fim, louve os linchadores. Um linchamento, mais do que para punir o linchado, serve para dar glória aos linchadores. Por isso é importante que, depois de uma lapidação qualquer, você puxe o saco dos líderes do movimento. Peça detalhes sobre as pedras utilizadas, pergunte como eles mantêm os bíceps tonificados, mostre interesse na sua técnica de atirar pedras em gancho, entreviste-os sobre tudo e qualquer coisa. Os linchadores querem ser vistos como justiceiros. Se você não os trata como tal, pode ser o próximo justiçado. Aliás, se puder, dê-lhes um presentinho, um mimo qualquer, seja uma medalhinha, um diplominha ou mesmo um trofeuzinho.

Muito bem, agora que você já está municiado com este pequeno arsenal de dicas, levante dessa cadeira e vá participar de um linchamento hoje mesmo! Se bem que, talvez, você nem precise sair da frente do computador.

 

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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