A ordem dos fatores altera o resultado pra dedéu

As estratégias para organizar um livro de contos e seduzir os leitores do começo ao fim
Ilustração: LS Raghy
09/06/2024

O axioma “a ordem dos fatores não altera o resultado” pode funcionar na matemática, mas não dá certo em literatura.

Descobri isso quando estava organizando Entre o dó e o sol maior, um livro de minicontos, com ilustrações de LS Raghy, que sairá em breve.

Para achar uma ordem interessante, imprimi todas as páginas e gastei um tempão tentando achar a melhor sequência possível. E vi que a ordem dos textos podia melhorar ou piorar a leitura.

No fim das contas, de tanto ler e reler a coisa, acabei inventando três regras para mim mesmo:

Primeiro mandamento: “Não começarás com teu melhor conto”.

Sim, eu sei, um bom primeiro conto pode empurrar o leitor para o segundo, mas este segundo será uma decepção. E todos daí em diante. Afinal, você gastou o seu melhor logo de cara. O leitor vai comparar todos os textos seguintes com o primeiro e vai parecer que você é um escritor preguiçoso, que não soube manter o nível inicial.

Por outro lado, também não deve começar com o pior e ir melhorando, porque o leitor pode largar o livro rapidamente se não gostar das primeiras páginas (eu, pelo menos, faço isso sem dó).

Então me parece que o melhor é começar com um dos melhores, que dê o tom do conjunto e revele o seu tema. Uma espécie de clave de sol.

Segundo mandamento: “Os iguais não devem ficar lado a lado”.

Numa coletânea com 49 minicontos, alguns acabam sendo um tanto parecidos, pelo estilo ou pelo tema. A proximidade desses textos poderia causar certo enfado no leitor e, pior, revelaria a minha falta de criatividade.

Então optei por separar os contos com algum parentesco {se bem que durante algum tempo tenha feito exatamente o contrário [em literatura, duas boas ideias podem ser exatamente opostas (por exemplo: pode ser interessante ter um estilo econômico e impessoal, mas também pode ser interessante ter um estilo verborrágico e pessoal)]}.

Enfim, como disse minha tia: “Tire essa ideia da cabeça! Primos não podem ficar juntos”.

Terceiro mandamento: “O último deve ser o último”.

Ou seja, o texto de encerramento tem que ter uma cara de fecho. Não pode estar lá por acaso, por sorteio. De alguma forma, ele deve servir como uma despedida da relação entre o leitor e o livro.

Talvez o melhor conto deva vir aqui, contaminando toda a impressão do leitor, assim como uma boa sobremesa às vezes salva uma refeição.

E, se não há um texto que sirva de chave de ouro, acho que se deve fazer um. Por exemplo, em Chapeuzinhos coloridos, eu e Marcus Aurelius Pimenta tínhamos alguns bons contos na mão, mas fizemos um especialmente para finalizar o livro, o da Chapeuzinho Preto, que fala sobre o tempo e sobre a morte.

Em Entre o dó e o sol maior (que é formado por histórias de músicos imaginários), optei por colocar um texto bem curto, que fala sobre microcontos e assim talvez faça o leitor pensar no livro todo. Uma metalinguagenzinha às vezes cai bem. Ficou assim:

Ele aprendeu a tocar o complexo oboé, tinha coordenação para o difícil acordeão, entendia os meandros da harpa, dominava as teclas e pedais do órgão e do piano, entendia como poucos as sutilezas do violino e mesmo as dificuldades da gaita de fole eram simples para ele.

Seu problema era o pandeiro. Não conseguia entender como uma coisa tão simples e pequena podia ter tantas nuances e riquezas.

O pandeiro é mais ou menos como os pequenos contos.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

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