Os dias seguem entre livros. Estou sentado à frente da Realejo, em uma das cadeiras, contemplando o início da tarde e bebericando um café distraído — sabendo que a distração será breve. A rua está movimentada e não tardaria até que eu avistasse algum passante conhecido. E foi isso que aconteceu antes do término do meu café.
Do outro lado da Marechal, vejo uma figura que reconheço — ou quase. Já fazia tempo que não via esse cliente. Boa praça, professor aposentado, estudioso do candomblé, dos orixás, apreciador de cachaça, leitor de romances policiais e, acima de tudo, um anarquista juramentado — chegou até a escrever sobre o tema.
Estava com aquela barba no início do abandono, que dá um aspecto de envelhecimento. Também mais gordo, com a voz mais esganiçada. Mas a energia continuava boa. A conversa começou sem cerimônia, como tem que ser entre leitor e livreiro. Mas não começou como eu esperava.
Ele se sentou e já foi dizendo que, há algum tempo, só lia nos famigerados e-readers. Senti o golpe. Ele começou a se explicar, descrevendo seu apartamento e, por consequência, seu sério problema de espaço — não havia mais canto algum para um único livro físico em sua morada.
No segundo seguinte, já refeito de mais esse golpe vindo de um cara da velha guarda (que tenho em boa consideração), orientei o rumo da conversa. Pensei: vamos ver no que dá. E botei o plano em ação.
— Mas Sérgio… ou Selmo?
— Não, Selmo é o nome do meu irmão.
— E como ele está?
— Está bem, mas as nossas divergências continuam.
Pronto. Refresquei a memória quanto aos nomes dos irmãos e prossegui, defendendo que há livros dos quais devemos nos apegar — e outros que podemos doar. Há livros que nos contam quem somos, e outros que já cumpriram seu papel conosco e, por isso, podem ter novas chances com outros leitores.
Sérgio baixou um pouco a guarda, e eu, atento, segui adiante.
— Viu que saiu o novo livro do Simas? Sete encruzilhadas da cidade. Também acaba de ser publicado o História dos candomblés do Rio de Janeiro, pela editora Civilização Brasileira. Ah, e viu essa reedição sensacional sobre o período do ácido lisérgico, LSD, flower power total!? Aquele do Timothy Leary e do Ram Dass?
Ele arregalou os olhos, gesticulava, elogiava os assuntos e as obras, falava sobre os autores — e sobre ele mesmo como leitor deles. Seguíamos sentados na calçada da livraria, e nesse momento dei o passo decisivo para sacramentar a venda:
— Aceita uma cachaça, Sérgio?
No mesmo instante, ele abriu um sorriso e assentiu com entusiasmo:
— Claro que sim, aceito!
Eu mesmo enchi o copo e levei a marvada para o amigo, que não deu um gole — despejou um pouco no pé da mesa e ofereceu ao santo o primeiro trago. No segundo, logo após sorver a bebida, ficou imóvel, fez um estalo com a língua no céu da boca e fechou os olhos. Enquanto o ritual se dava, eu comentava:
— Essa é a Mata Verde, de Minas Gerais. Descansou em Amburana. Boa demais, né?
Fiquei sabendo também que, dali, ele iria ao dentista. Brinquei que a anestesia já estava sendo aplicada por via oral. Ele riu. Depois me atualizou sobre sua saúde, e aí o humor perdeu a graça. Descobriu recentemente que está com diabetes em um nível assustador — soube da pior maneira, após um desmaio. Ao ser examinado, veio a notícia. E ele, com o copo na mão, se defendia:
— Até água altera a glicemia. Agora uso um medidor eletrônico. Olha só: 125. Está ótimo. No dia da descoberta, estava em quase 900!
Eu, culpado, ouvia e me arrependia de ter oferecido a cana.
O tempo avançava e a prosa fluía. Depois de boas dicas de suas leituras recentes, ele olhou as horas e disse que precisava ir ao dentista. Mas antes queria levar aqueles três livros.
— Coloco numa sacola?
— Não, levo na mochila.
— Vou pegar a máquina de cartão então.
Ele agradeceu e me esticou o pequeno copo:
— Pode me trazer mais uma?
O santo já estava de pileque. Ao final do atendimento, dei um abraço e desejei que ele logo se mudasse para um apartamento maior.
Ele riu alto, agradeceu e foi à consulta.
— Se cuida, Sérgio!