Pascoal ou assim se voava antigamente

Um livro pode ser uma ponte, pode ser um abraço, pode ser um alento pra saudade
Ilustração: Bruno Schier
06/12/2023

Nós, os Livreiros, assim com maiúscula, deixem eu me sentir importante, como dizia, nós, os Livreiros, temos uma memória ligada aos clientes que se tornaram amigos. E isso deve acontecer na maioria esmagadora de comércios, sejam bares, salões de beleza ou que tais. Mas numa livraria essas lembranças ganham outros significados, ganham nuances. Um dos grandes amigos que fiz entre livros foi o Pascoal, o José Pascoal Vaz, economista e ativista político, que dedicou sua vida ao estudo da desigualdade econômica, levando seus estudos e a sua força para cargos públicos como o de secretário de Finanças de Santos ou dentro do mundo corporativo ou ainda para pequenas comunidades de agricultores, sempre lutando de forma corajosa, humanitária, sempre, sempre, sempre por oitenta anos.

Quis o destino que um câncer o levasse, mas nunca sem luta. Acho que nunca vi alguém conviver com a proximidade do próprio fim com tanta leveza e coragem. Muito antes desse capítulo da sua vida, vale lembrar de como nos aproximamos para além de um leitor e um Livreiro. Pascoal era apaixonado por voar, lia obras que tinham ligação com o tema, desde Exupéry do Pequeno príncipe, que era aviador, até livros que traziam o elemento voo em seu enredo. Lembro quando o Pascoal me disse com os olhos brilhando que tirou a licença de aviador em Itanhaém onde havia um clube para este fim, lembro também de um livro que ele levou, Quando a sombra descola do chão, uma alusão à aeronave alçando voo, e lembro de um livro que virou uma anedota entre nós.

Pascoal descobriu um livro de pequena tiragem, quase caseira chamado Assim se voava antigamente, um livro impossível para uma livraria que trabalha com títulos novos, foi publicado por um pequeno e apaixonado também autor gaúcho. E todas as vezes que o meu amigo me visitava fazia a mesma pergunta: “Bom dia! Tem o livro Assim se voava…” A resposta era a mesma: não tinha, mas podia tentar trazer. Ele ria, brincava com meus funcionários para quem também perguntava, deixava eles fazerem pesquisas sem sucesso enquanto me olhava com olhos que sorriam.

Um dia Pascoal foi ao Fórum Social Mundial em Porto Alegre e por esporte fez essa mesma pergunta a um Livreiro local e para sua surpresa o homem conhecia o autor e a dita obra. Pascoal conseguiu o livro. Ele levou o livro para que eu visse que era de verdade, um exemplar surrado, todo manuseado, um livro mágico para nós dois. Essa anedota, a valsa da pergunta que já sabia que ela faria com a resposta programada durou por muitos anos, até o final da vida do amigo. Uma pena o amigo não ter podido ir ao evento de lançamento do meu livro de memórias, causos, que dediquei apenas quatro linhas para um momento em que esteve na livraria ajudando um menino que desejava ser economista, assim como ele. Pena ele não ter visto sua neta, Natália, menina que vi uma ou duas vezes com ele, cheio de orgulho me apresentando enquanto pedia um café com três gotas e meia de adoçante, ele adorava essa pegadinha. Pena que ele não viu a Natália pedir um exemplar do meu livro, eu perguntei o nome dela, havia me esquecido quem era ela, ela me disse, eu perguntei se era pra presente, ela disse que era pra ela mesma, pra finalmente dizer que era neta do Pascoal, eu fiquei parado olhando pra ela por um segundo, baixei os olhos pra dedicar o livro e quando olho pra ela novamente seus olhos estão cheios de lágrimas, assim como os meus.

Um livro pode ser uma ponte, pode ser um abraço, pode ser um alento pra saudade.

Que saudade, leitores.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho