De salto alto

A esperança de ver uma livraria nascer arrefeceu ao instalarem a placa anunciando uma nova loja de sapatos
Ilustração: FP Rodrigues
17/06/2023

A tematização de um bairro, suas preferências e perfil não são criadas ao acaso. Numa cidade como São Paulo — e aqui vão apenas alguns exemplos físicos em algumas cidades e aqui você vai encaixar suas referências livremente —, bem, numa cidade como São Paulo existem as ruas temáticas, onde se agrupam prestadores de serviço com perfil semelhante, ou comércios semelhantes. No bairro da Consolação há as lojas de luminárias, na Vila Madalena há cafés e bares mais autorais, no centro nasceram comércios inspirados, dentre eles, livrarias.

Nas andanças que faço por Portugal com a família, a minha mulher tem boa parte da sua família por lá, sempre estico o olhar de viajante, este é mais atento ao novo, e reparo que também o agrupamento acontece, a tematização se manifesta. Em Coimbra, cidade que abriga um grande centro universitário e, por conta disso, as livrarias estão por perto. Um exemplo ainda mais radical é nos arredores da Universidade de Sorbonne, que caminhando por suas ruas próximas elas, as livrarias, nos dão o recado: olha, aqui a coisa é séria, aqui é o lugar da busca do conhecimento, meus amigos.

E aqui em Santos, cidade onde nasci e envelheço com alguma dignidade? Em Santos não tenho o olhar do viajante e me pego percebendo menos as nossas belezas. Acho que temos uma beleza calma, menos incrível do que a topografia carioca, mais provinciana do que a capital mais próxima, mas com nosso charme portuário, centro histórico e praias urbanas, um conjunto que funciona, sem dúvida. Mas a cisma dessa crônica rabugenta, logo verão, é esse olhar que me faz ficar perplexo por conta dessa segmentação lógica que citei há pouco.

Em Santos, temos algumas universidades, particulares e públicas, e isso me passa otimismo sobre o futuro das ideias, mas tem sempre o famigerado “mas”. Numa dessas universidades, a Unisanta, bem ao lado dela, vizinho mesmo, iniciou-se uma obra no imóvel. Passei algumas vezes, curioso, na minha rota rotineira rumo à minha casa, acho que foram alguns meses, primeiro os tapumes, depois comecei a ver o sobrado mais pronto, pra finalmente passar e ver a placa luminosa informando o nome de uma rede de lojas de sapatos femininos.

Eu esperava uma livraria, eu sei, eu espero demais por vezes, mas ficou uma sensação de sermos aos poucos vencidos, ao ver uma febre de barbearias performáticas que dão cervejas pros clientes, ver a nova onda dos hortifrutis, acho que abriram uns vinte na cidade, ao ver academias e farmácias e sentir que se vive sem a gente, os livreiros de rua, na vizinhança.

E logo depois de escrever esses apontamentos, seguirei para a minha livraria de rua, receberei clientes desconhecidos e amigos, vou resmungar, mas sempre com esperança, sempre acreditando que podemos crescer e espalhar as iniciativas que podem fazer nascer mais espaços na paisagem urbana, mais livrarias, menos salto alto.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho