Cuícas no cair da tarde

O lançamento de um livro vira uma verdadeira festa com muito samba, bebidas e novas amizades
Ilustração: Bruno Schier
19/05/2024

Foi num sábado e me lembrou um filme do diretor Robert Altman, Cerimônia de casamento, no qual somos convidados a acompanhar os bastidores de uma festa íntima em tempo real, as pequenas histórias das pessoas, as surpresas e os flagrantes da vida quase real. Neste caso, acho que, descontando o famoso passarinho da crônica (alô, Mário Prata; alô, Nelson Rodrigues), essas passagens são bem próximas do que vivemos neste dia, entre livros.

Recebi os autores do livro Cuícas imortais (Mórula) para um evento. Já adorei os nomes dos autores: Paulinho Bicolor vindo do Rio e o J. Muniz Jr., santista da gema, o Marechal do Samba. Além deles, recebemos a ilustre visita do quase nonagenário Osvaldinho da Cuíca, e de um grupo, uma roda de samba que se apresentou pela tarde adentro na nossa calçada famosa.

O lançamento estava agendado para as quatro da tarde, mas uma hora antes já chegavam os autores e o filho do veterano Muniz, que vinha com a ajuda de uma bengala, que neste caso dá uma cadência sintonizada com esse mundo delicado do samba, o caminhar lento, que luta para seguir com a sua memória, suas raízes.

Eu já estava saboreando essa tarde, vendo as evoluções da roda de samba, quatro componentes, cuíca, cavaco, surdo e pandeiro, só pediram águas e café até o momento, não querem cerveja? Será que a livraria os intimidou, ou será que os médicos os alertaram: olha esse colesterol, rapaziada?

O rapaz do surdo, com suas tranças, túnica étnica, foi um dos integrantes do grupo Originais do Samba. Eu, pra me entrosar, mandei aquela, driblei o apelido do mais famoso sambista do lendário grupo e confirmei, tocou com o Antonio Carlos, ele balançou a cabeça e repetiu, sim, ele mesmo! Chamar o Mussum pelo nome deve ter me dado alguma credibilidade, penso.

O rapaz do cavaco que além de tocar cantava, como todos, era a voz guia. Quando levei uma água, ele esfregava as pontas dos dedos com a outra mão e lamentava que estava com dormência nos dedos por conta de seis hérnias conquistadas em sua rotina de dono de um carro de pastéis e as subidas de lances de escadas com caixas de insumos. Em meio aos lamentos, passou o endereço e os sabores dos pastéis. Um dia irei conferir.

A livraria ia lotando, os livros vendendo, os autores com seus chapéus de palha no estilo e o samba se encarregando de reunir tipos diferentes, atraídos pelas canções. Um casal se aproximou olhando com curiosidade as informações do que servimos no nosso bar-café, o Café Impresso, microinstituição que fica dentro da pequena Realejo Livros. Quando ofereço ajuda, noto os sotaques gringos, pergunto de onde são, a moça italiana com algum traquejo no português e o rapaz croata com zero traquejo no português. Parola vai parola vem, digo das nossas cervejas artesanais, yeah, craft bear, eles decidem por ela e todos vamos conferir a roda de samba. Eles se empolgam e dizem na linguagem universal da boemia, beba com a gente, eu hesito, só um pouco, claro, e eles dizem com energia, quero que você beba com a gente, eu pago. Não era exatamente esse o obstáculo, sei lá, queria ser mais profissional, mas daí pensei, deixa de onda, livreiro, e topei, e topei que pagassem pra surpresa dos funcionários. Quando estávamos voltas à frente no autódromo, quis devolver a gentileza e peguei uma cachaça, like a grapa, disse pro gringo, e eles diferentemente de mim não hesitaram, beberam revirando os olhos de aprovação, uma amizade nasce.

O samba desenrolava bonito no fim de tarde, segui proseando com os novos amigos e isso aconteceu como num filme do Altman, mas bem mais longo, com menos recursos e não menos teor artístico, foram quatro horas de um filme inesquecível para mim.

Obrigado pela preferência, voltem sempre.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho