Com carinho, Manu

A viagem até São Paulo e as lições aprendidas com uma motorista trans
Ilustração: João Verderame
22/09/2023

Uma das características da minha rotina é de volta e meia subir a serra pra fazer alguma reunião, tentar fechar algum negócio ou simplesmente encontrar meus amigos que são também meus autores. Para isso, tenho um motorista parceiro há quase vinte anos, ou melhor, tinha esse parceiro. Não, não houve nada de mais grave com o taxista, com o Correa, mas aconteceu algo que o impossibilita de fazer viagens. Não sei ao certo, acho que nem ele sabe, olha o perigo!, mas tem acontecido repetidas vezes de ele ter pequenas ausências, desmaios, dirigindo. Dessa forma pausamos a parceria até que esteja mais seguro pra ele e pros passageiros. Estou na torcida, velho camarada.

Pois bem, dia desses que fui convocado pra uma reunião em São Paulo, assuntos relacionados a um futuro projeto referente à memória do Rei Pelé. No encontro estavam os executivos de uma grande instituição ligada ao Rei e do outro lado parceiros de longa data, como o fotojornalista Fernando Costa Neto, pros chegados, Dandão. Ele, o Dandão, é um personagem, fotógrafo da revista Trip, companheiro de viagens do jornalista gonzo Arthur Veríssimo, um dos editores do lendário Notícias Populares, um tabloide sensacionalista que fez história no jornalismo, um dos caras que mais viu e divulgou grandes histórias reais na praça.

Como o Correa pendurou momentaneamente o volante, liguei pro novo parceiro, o gente fina Daniel, que me atende há alguns meses. Mas tinha me esquecido, Daniel não pode às quartas, dia de seu rodízio de placas. Sendo assim, precisava achar um plano C, liguei pra um amigo que me passou o contato de mais um motorista. Curiosamente esse eu também já conhecia, pois tinha estudado comigo na época do colégio. Gostei de saber que o Luis está na batalha, mas ele também já tinha assumido um compromisso pra essa quarta. Pena. Mas no mesmo minuto, ele me manda outro zap dizendo que tem um amigo que pode me atender, mas ele precisava me consultar sobre algo antes de passar o contato. Fiquei curioso.

Ele revela o mistério: seu amigo é agora, coisa bem recente, uma mulher trans. Eu, no mesmo instante, ora, sem problemas, ela sabe dirigir, né? Então, por mim está ótimo. Em segundos, recebo outro zap, este com uma imagem de uma frente de um Corola e logo abaixo o nome, Luiz Mauro.

De forma objetiva se apresenta e me pergunta o local da reunião em São Paulo, quanto tempo ficaremos por lá pra calcular o investimento do novo cliente, este que vos tecla. Tudo definido marcamos na frente da livraria Realejo a partida. Cheguei minutos atrasado, mas vi o carro que parceria ser o da imagem do zap, estava um calor dos infernos neste inverno de El Niño, uns quarenta graus no meio de agosto. Bato na porta e Luiz Mauro baixa o vidro, olhamos um pro outro, eu sorrio e ele também. O jeito me lembrou a Tina Turner, talvez o vestido pink, talvez as unhas aplicadas ou mesmo o cabelo até os ombros, não sei ao certo. Fui pro banco de trás com meus livros que iria entregar pros parceiros na reunião e logo perguntei: como te chamo, Luiz? Ela me olha em triunfo, com orgulho e diz: Manu.

Seguimos para a reunião, eu e Manu, que fala pelos cotovelos de forma muito articulada, com muita leveza e naturalidade me contou sobre sua vida, seus clientes e sua forma de ver o mundo, de resolver seus problemas, eu pensando como ela é corajosa, a Manu.

A reunião fluiu bem, e, no final da tarde, começamos a nos despedir e nesse instante o Dandão me pergunta: Zé, tá com o Correa? Pode me dar uma carona até uma estação de metrô? Eu ri por dentro e disse depois de titubear um segundo, claro que te levo mas não é o Correa, é a Manu que vai nos levar, ela é uma mulher trans, Dandão. Ele abre um sorriso e fala: vambora, só tu mesmo, Zé.

Manu nos esperava no boteco da esquina na Vila Madalena, chupava um Chicabon de pernas cruzadas em seu tubinho pink, tomou um susto quando chegamos e a deixei terminar o seu picolé sem pressa, no seu tempo, Manu.

Manu conduziu de forma perfeita, nos contou histórias, demonstrou segurança e se despediu ao final do dia.

Desejo a Manu muita sorte e que tenha cada vez mais clientes, dentre eles, eu.

Muito prazer, Manu, obrigado pelas lições que me deu sem se dar conta.

E espero que a reunião dê resultado, Manu só falta ser pé quente.

Vamos comemorar ao som de Tina Turner, Simply the best!

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho