A memória do livreiro

As muitas informações que um bom livreiro precisa carregar entre títulos, autores, traduções e clientes
Ilustração: Bruno Schier
25/07/2023

Ainda bem que não tem crase no título desta crônica: este não será um texto sobre um livreiro que se foi, não é um obituário, apenas o título se concentra no assunto sobre a memória, e mais especificamente, sobre a memória dos livreiros, e ainda mais especificamente sobre a memória deste que vos tecla. Para todas as profissões os indivíduos de boa memória têm boas perspectivas, se lembrar de pessoas, dos compromissos, guardar dados com facilidade é sempre um fator de relevância. Para os livreiros nem se fala. A quantidade de informações que devemos represar, os autores, as escolas literárias e seus movimentos, as feições dos clientes, ops, cheguei no tema, os clientes.

Estava sentado em uma das mesas que ficam na calçada da destemida Realejo Livros (aqui em Santos), tomava um café impresso (eu e os meus trocadilhos, sim, há uma placa com o nome do meu café, que é impresso), quando entra animadamente uma família. O pai estica a mão e me cumprimenta com boa intimidade e eu, claro, retribuí, sem pestanejar, abri o sorriso e já emendei a primeira conversa, sempre lembrando que na livraria a prioridade é o trabalho, pois então fui já falando sobre autores e nesse instante se abateu uma sombra de dúvida, qual era o nome mesmo dele, do cliente?

Usei a minha experiência de atendimento e fui pelas beiradas, tinha o caminho de suas leituras anteriores, que lembrava de forma clara, cristalina. E aí? Tudo bem com vocês? E os russos? Tem lido muitos? Qual foi o mais recente que leu? Viu essas traduções diretas publicadas pela 34, o Irineu Franco Perpétuo é ótimo, o tradutor… O cliente sempre simpático esperou a minha apresentação acalorada e um tanto longa, talvez o ato falho de enquanto mostrava os títulos as tentativas de me lembrar do nome dele, enquanto isso a família escolhia seus livros e pediam café. Tudo andava mais ou menos sob controle até o momento em que ele abruptamente me recoloca no rumo. De forma direta e divertida me lembra: “Nunca li os russos, Zé, adoro biografias, lembra?”. Eu, estancado, fiquei com os meus fichários mentais em alvoroço, ainda sem lembrar o nome do simpático cliente. Aí ele finalmente dissolveu o meu mistério particular. Sou o seu oftalmologista! Como está a Ana, e as crianças? Eu rapidamente encaixei os arquivos e caí na gargalhada, um pouco constrangido, é verdade, tenho que admitir.

Vendi uma biografia e os russos voltaram paras as prateleiras.

Não atendi mais o Paulo (acho que este é o nome dele), espero que ele retorne em breve. Depois conto como foi.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho