A descoberta da irrelevância

A odisseia de um livreiro na tentativa de conseguir livros de uma editora cujo descaso pelas livrarias é evidente
Ilustração: FP Rodrigues
17/08/2024

Escrevo essas linhas sob um manto de raiva, com constrangimento que não dissipa (por isso, talvez) a força que tenha me movido a dividir este episódio em que me senti como trago no título do texto.

Numa livraria de rua, de único dono, não há cerimônia alguma por parte dos frequentadores que nos informam sobre novidades do mercado, seus lançamentos, enviados das boas surpresas. Claro que isso vale também para grandes livrarias. Afinal, atendemos pessoalmente os leitores e gosto dessa informalidade, desse corpo a corpo.

Os clientes, leitores, são nossos olhos, nossos curadores e aliados e, com a ajuda deles, construímos a identidade da livraria juntos, todos os dias, ou quase todos os dias. O problema é este quase.

Comecei a ser bombardeado pelo algoritmo com os posts e book trailers de uma editora que até então não tinha ouvido falar. Esses posts impulsionados me acharam todas as vezes que abri o aplicativo, notei os títulos e a qualidade das apresentações dos livros, senti simpatia pelos títulos, pelos projetos gráficos de bom gosto.

E os clientes também sentiram o que senti, e comecei a receber pedidos deles, dos livros dessa editora, a Ponto Edita.

Numa mesma semana, mais de cinco pedidos. Achei notável, pensei, que boa notícia, vou pedir para que um distribuidor faça o pedido de alguns livros. Os distribuidores são importantes para as pequenas livrarias, eles vão em busca de muitas editoras, montam pedidos com várias editoras, possibilitando a chegada desses livros aos pontos finais, as livrarias.

Percebi que depois de uns três dias, a distribuidora não me respondeu sobre a missão. Ao mandar mensagem, recebo a informação de que ninguém da editora retornou aos chamados. Ampliei a busca chamando mais um parceiro distribuidor, ambos experientes e bem grandes com mais de 500 editoras representadas. O mesmo aconteceu: silêncio ensurdecedor.

Resolvi fazer eu mesmo a busca. O primeiro direct no instagram foi feito, um dia depois, o segundo, dali parti pro site da editora, mandei um e-mail, vi que tinham um telefone de contato com horário definido para atendimento, liguei uma, duas, trocentas vezes, tocava até cair a ligação, e o post patrocinado aparecendo todas as vezes que abria o aplicativo, o mistério aumentava.

Depois de umas duas semanas, resolvi printar várias das mensagens e fiz um post provocando a editora a se manifestar, já pensando até em algo mais misterioso. Até me passou pela cabeça uma arapuca, uma empresa fantasma. No entanto, não me convencia disso: os posts eram bem-feitos demais. Afastei essa teoria da conspiração.

Escritores amigos e jornalistas me enviaram mensagens, alguns dizendo que realmente não conseguiam contato com eles, outros diziam que sim, eles existem. Nesse meio tempo, recebi mais uma pista, um e-mail de alguém da editora. Eu, cheio de desconfiança, escrevi pra eles.

Disse quem era, de onde escrevia, elogiei seus títulos e ao final pedi alguns exemplares, para compra. Recebi a primeira resposta em questão de minutos, uma linha apenas que dizia: “Não temos interesse em parcerias”. Eu fiquei parado com aquela frase econômica, direta, sem nenhuma fresta ou convite para darmos seguimento nas tratativas. Ignorei, claro, o primeiro dar de ombros recebido e devolvi outro e-mail perguntando mais sobre quais eram as ideias deles, sua estratégia, enfim, queria seus livros e queria também explicar para os meus clientes o que se passava. Senti que não agradava, pois começaram a demorar a responder e dali em diante coloquei na pauta essa missão: responderam meus outros sete e-mails da mesma forma lacônica, como não conheço a figura posso pensar que seja um tímido no teclado e talvez o mesmo pessoalmente, mas confesso que a impressão que me deixa é de desinteresse mesmo.

As livrarias são os lugares onde os livros respiram, se mostram e se confirmam, onde os livreiros fazem eles, os livros, serem notados de forma espontânea, longe dos algoritmos, das redes sociais que tentam ser autossuficientes e pelo jeito conseguem.

Levei também o assunto para um amigo livreiro que teve uma visão mais neutra, talvez mais sábia ou distante, não consigo definir. Ele disse: “olha, não vejo problema em uma editora não querer atender livrarias, assim como livrarias não atendem algumas editoras”. Eu discordo: uma livraria deve, sim, escolher com quais editoras têm mais afinidade e, sendo assim, com as decisões e escolhas, chegar ao famoso perfil da livraria dentre os muitos perfis existentes. Mas no caso dessas mal traçadas linhas o fenômeno é diferente: a editora não pretende ter seus livros em livrarias, o que é para mim, o sinal dos tempos digitais, do início da irrelevância da livraria, da ruptura com esse mundo físico e por sua vez do equilíbrio da cadeia do livro.

Peço desculpas aos meus clientes, pois falhei na missão, pelo menos até o dia de hoje. Em tempo, os livros que nos foram pedidos gentilmente pelos amigos, As ilhas desconhecidas, de Raul Brandão, e Dois Sherpas, de Sebastián Martínez Daniell, lamento mas não posso oferecer para encomendas, só posso me indignar. Não só posso, como permaneço assim, indignado, irrelevante.

Seríamos nós, os livreiros e por consequência as livrarias, irrelevantes? Deixo essa pergunta pra gente pensar.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

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