(25/10/20)
Todos os anos, os dias que antecedem o anúncio do Prêmio Nobel de Literatura são tomados por especulações sobre quem será o provável vencedor. Neste não foi diferente, e figuravam na lista das casas de apostas nomes como Haruki Murakami, Margaret Atwood, Ngugi wa Thiong’o, Maryse Condé e Jamaica Kincaid. Fui procurado por um jornal para escrever um texto sobre o vencedor, caso fosse Thiong’o. Depois de tanto tempo premiando autores europeus e norte-americanos, e do desastre da premiação de Peter Handke, defensor de Slobodan Milosévic, responsável pelo massacre bósnio na Guerra do Balcãs, em 2019, esperava-se que um autor do continente africano, Caribe ou mesmo da China, fosse anunciado vencedor.
Por força desse compromisso, decidi assistir ao anúncio ao vivo, via rede, para logo em seguida descobrir no breve comunicado do secretário permanente da Academia Sueca que a vencedora era a poeta e ensaísta norte-americana Louise Glück. Confesso que não conhecia a autora, nem mesmo me senti surpreso com o prêmio, já que ao longo de seus 117 anos de existência essa tem sido a regra das nacionalidades que costumam receber o galardão. Não questiono seu mérito, já que ao longo dos dias que se seguiram li traduções de poemas da autora em jornais e revistas literárias, e fiquei bem impressionado com a qualidade de seu trabalho.
Mas o que esperar de uma academia formada por membros vitalícios, que vivem em relativo estado de bem-estar social, numa sociedade sem grandes conflitos e incapazes de compreender uma literatura criada a partir de lugares tidos como historicamente subalternos?
O Prêmio Nobel de Literatura, por sua longevidade, tradição e valor monetário, costuma ser tido como o mais importante galardão literário. É fato que há vencedores que já não são lidos, nem mesmo lembrados. E que mesmo autores do cânone literário ocidental como James Joyce, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges e Chinua Achebe jamais o receberam. Mas há também aqueles que foram agraciados pela marca de suas obras, como Hermann Hesse, William Faulkner, Gabriel García Márquez e Toni Morrison. Aliás, houve até um breve período, entre os anos 1980 e o início da década de 1990, de relativo vanguardismo para os padrões da Academia Sueca, quando três autores negros foram premiados: o nigeriano Wole Soyinka (1986), o caribenho Derek Walcott (1992) e a norte-americana Toni Morrison (1993).
Mas o que esperar de uma academia formada por membros vitalícios, que vivem em relativo estado de bem-estar social, numa sociedade sem grandes conflitos e incapazes de compreender uma literatura criada a partir de lugares tidos como historicamente subalternos? Serão os membros da Academia Sueca capazes de compreender a originalidade das obras de Jamaica Kincaid, Maryse Condé, Scholastique Mukasonga, Ngugi wa Thiong’o ou Milton Hatoum? Literaturas escritas a partir da experiência particular da diáspora africana, do colonialismo ou da imigração e violência dos países periféricos?
Esse problema não é apenas do Prêmio Nobel, mas de inúmeros outros, inclusive os nossos. Por que só em 2019, depois de mais de 50 anos do Prêmio Man Booker, uma mulher negra, Bernardine Evaristo, o conquistou pela primeira vez? Por que James Baldwin, que tem uma brilhante obra ficcional e ensaística, jamais recebeu o Pulitzer ou o National Book? Toni Morrison escreveu uma das mais importantes obras literárias da segunda metade do século 20. Seu romance Amada causou grande impacto e comoção entre os americanos. Mas Morrison não recebeu o National Book como esperavam, o que fez com que 48 escritores e críticos negros assinassem uma carta pública a favor da autora, apontando que o racismo estrutural da sociedade americana também se refletia nos júris e atribuição de prêmios. No Brasil, um país com 55% da população formada por pessoas de ascendência negra, e outras tantas de indígenas, quantos autores e suas histórias protagonizadas por negros e indígenas venceram prêmios literários brasileiros? Não consegui encontrar a informação. Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, um dos grandes romances de nosso tempo, recebeu o Prêmio Casa de las Américas em Cuba, mas nenhum prêmio literário no Brasil.
O que está em questão é a consideração de que a nossa história é também a história da humanidade, de pessoas que amam e têm a capacidade de imaginar e criar mundos novos e profundos, mesmo sendo historicamente silenciados por uma sociedade estruturalmente racista. É o reconhecimento de que a história das sociedades negras e indígenas são dotadas da mesma grandeza que as muitas civilizações ocidentais, como a hebreia e a grega. O documentário Toni Morrison: partes de mim conta que quando o grupo de autores e críticos elaborou a carta a favor de Morrison, uma das signatárias procurou a poeta americana Gwendolyn Brooks e lhe perguntou se gostaria de assiná-la. Ela respondeu: “Por que implorar pelo prêmio dessas pessoas?”. Brooks falava sobre a incapacidade da crítica e do júri de compreender a experiência afrodiaspórica. E eu me pergunto por que devemos implorar pelo Prêmio Nobel? Por que nós, dos países do Sul, América Latina, África, Índia, Sudeste Asiático não damos um passo para criar o nosso prêmio? Um prêmio para celebrar todo um cânone literário que verse sobre a nossa experiência? Para o atual momento de nossa história, representatividade e reconhecimento importam.