“Gostas mais do pai ou da mãe?”, perguntavam-lhe em criança, mas sempre se escusou a responder com a verdade. Percebeu desde cedo a armadilha a que era sujeita. Os adultos, nunca satisfeitos com a falta de resposta, insistiam: “Vá, toda a gente tem preferências. Diz lá, gostas mais do teu pai ou da tua mãe?”. Dizia, forjando convicção: “Dos dois. Gosto dos dois”. Nunca diria a verdade, nem mesmo imaginando que a torturassem de formas inusitadas.
Em tempos ouviu o avô contar histórias dos senhores da PIDE (a Polícia Internacional e de Defesa do Estado), o que faziam às pessoas quando achavam que elas estavam a mentir. Como tinham impedido o seu tio-avô de dormir durante vários dias, só porque queriam que assumisse que era comunista. Disseram-lhe que esse tio-avô quase enlouqueceu por ter estado tanto tempo sem dormir. Por isso, quando lhe faziam essa pergunta de forma insistente, nunca satisfeitos com a mentira piedosa que contava, imaginava que a pudessem torturar como os senhores da PIDE ou como os senhores da inquisição, que punham cabras a comer os dedos dos pés aos mentirosos e aos ladrões, como tinha visto num museu numa das excursões da escola a Lisboa.
Mentir não era propriamente uma coisa de que gostasse e que fizesse bem. Mas sabia o dano que causaria a um dos progenitores caso declarasse a sua preferência. Por isso, mentia. As crianças também mentem, e bem. Pensou que podia escrever um texto, contrariando o título do mais recente livro de Elena Ferrante. A vida mentirosa das crianças. Todas as crianças que conheceu diziam mentiras. Ela própria também o fazia. Sentia que era uma forma de escapar a um problema, embora também tivesse a noção de que não estava correcto, e mentir era-lhe difícil. Por isso, quando afirmava que gostava tanto do pai como da mãe, algo dentro de si se revolvia, uma espécie de azia por si própria por lhe faltar a coragem para ser honesta e má o suficiente.
Também mentia quando lhe perguntavam se gostava da casa onde vivia. Uma casa demasiado pequena e feia e triste, nenhuma criança gostaria. Não sabe por que lhe perguntavam, parece que queriam leccioná-la na mentira, parece que, sabendo a verdade, a forçavam a mentir só para não fazer má figura. E mentia, sobretudo, fingindo estar sempre tudo bem. Não queria dar preocupações, e desde cedo percebeu que a única pessoa responsável pela alegria é o próprio.
Na escola primária também assistia às mentiras da melhor amiga, dizia que não lhe faltava nada na vida, quando muitas vezes ia para a cama com um prato de sopa no estômago, e usava as mesmas roupas durante dias até terem muitas nódoas e as camisolas de lã começarem a cheirar mal. E o seu namoradinho, cujo pai batia na mãe quase todos os dias, também mentia quando contava que os pais gostavam muito um do outro. Todos mentiam. E mentiam o melhor que conseguiam, só para evitar chatices aos adultos.
Percebeu desde cedo que todos mentiam, as crianças especialmente. E mentiam muitas vezes por saberem que era uma forma de estar em consonância com o mundo dos adultos, em que a maior parte das perguntas parecia vir armadilhada, como um teste que trazia uma atitude implícita. “Mente, se queres fazer parte do nosso grupo.” As crianças percebem que é preciso mentir desde cedo. Talvez o instinto animal esteja ainda mais apurado. Mentem porque sabem que é assim que deve ser, assim que apreendem a linguagem. A linguagem é para isso que serve afinal, parecem indicar os adultos — para mentir. Talvez a mentira seja mesmo um instinto único do ser humano, só porque inventou a linguagem.