Vanguarda do passado

Gestos banais, como dar bom-dia ou responder a um e-mail, revelam fronteiras invisíveis que dividem o mundo — e escancaram quem está fora de moda
Ilustração: Eduardo Mussi
03/10/2025

O mundo é dividido entre os que usam e os que não usam guarda-chuva. A frase não é minha. Numa crônica publicada na Folha de S. Paulo em 2008, Danuza Leão lançou a ideia: “Dizem que o mundo é dividido entre os que usam e os que não usam guarda-chuva, e sou das que acham a chuva uma delícia, sobretudo quando está fazendo calor (…)”. Por algum motivo, meu marido adorou isso e transformou em bordão. Em todas as chuvas vividas comigo — e olha que não foram poucas —, repete, com o ar superior de quem prescinde de proteção: “O mundo é dividido entre…”, deixando claro, no que diz respeito a esse tema, que estamos em campos opostos. Carrego um guarda-chuva no carro e tenho outros guardados em casa. Além das capas de chuva.

Para mim, o mundo é dividido entre os que dão e os que não dão bom-dia. E aí, sim, há uma cisão instransponível. No meu prédio mora um sujeito que não dá bom-dia. Para se ter uma ideia da gravidade do caso, já aventei a possibilidade de ele ser deficiente auditivo. Durante certo período, nossos horários coincidiam. Todas as manhãs, quando eu saía do elevador na garagem, o cara entrava. Ele puxava a porta e olhava para mim. Eu dava bom-dia e não havia resposta. Depois do centésimo bom-dia no vácuo, resolvi fazer um teste para tentar constranger a figura. Aumentei o volume da saudação matutina e ampliei o sorriso. Não houve reação. Indignada, decidi colocar em prática a minha técnica de olhar através e não me dirigir a ele, mas, na hora H, acabava deixando escapar um bom-dia automático que ecoava no silêncio mantido pelo vizinho. Nossa rotina então mudou, e deixei de encontrar o rapaz durante alguns meses. Semana passada, pegamos juntos o elevador no início da noite. Ele entrou depois de mim e, distraída pelo celular, dei boa-noite. Não é que ele respondeu? Até me assustei.

Eu poderia seguir com a lista “O mundo é dividido entre” com exemplos hilários e outros nem tanto. Fico com apenas três. Um fenômeno que me intriga diz respeito às pessoas que não respondem e-mails. Sim, pasmem, o mundo também é dividido entre pessoas que respondem e que não respondem e-mails. Algo que nem as caixas de spam são capazes de justificar. A cada e-mail não respondido, ouço a voz de Sergio Chapelin na antiga chamada do Globo Repórter: “Onde vivem? O que comem? O que fazem?”. Se alguém souber, me conta.

Outro fenômeno que me causa espanto: o mundo — o carioca ao menos — é dividido entre pessoas que usam e que não usam a seta do carro. Seja para indicar mudança de pista, seja para mostrar que pretendem virar à direita ou à esquerda. No Rio, acho que só meia dúzia de pessoas faz uso desse recurso. Tem também as pessoas que recebem um presente, uma flor, um chocolate e não se manifestam. Você manda um livro, o seu livro. Nesse caso, faz inclusive uma dedicatória. Coloca num envelope, manda entregar ou paga um Sedex. Pensem nisso. E a pessoa não é capaz de digitar duas palavras: recebi, obrigada. Não precisa ler o livro. Nem dizer que gostou. Basta acusar o recebimento e agradecer. Cláusula pétrea da boa educação.

Minha filha adolescente disse — em tom de crítica — que sou uma pessoa “muito emocionada”. Perguntei se ela queria dizer que sou emotiva. “Não se diz mais emotiva. É emocionada”, respondeu. Já havia sido classificada por ela antes como “vanguarda do passado”. Sem saber, ela foi precisa. Sou uma pessoa emocionada e, pelo que percebo, fora de moda.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho