Somos todas cachorras

A autora expõe, com ironia e desconforto, como responsabilidade e culpa recaem sempre sobre as fêmeas, mesmo quando o comportamento dos machos é o verdadeiro problema
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
14/11/2025

“A sua cachorra está no cio?!”, entreouvi quando saíamos da praia, em Itamambuca, num domingo de carnaval. Sem entender o que se passava, observei uma das amigas se afastando, celular acoplado ao ouvido, expressão alterada.

Minutos depois, ela sentou com o resto do grupo na mesa posta para o almoço. Maggie, a buldogue francesa de personalidade complexa, passava o feriado num hotel para cães a cerca de trezentos quilômetros dali. A voz feminina e exasperada ao telefone continuava, agora no viva-voz: “Não costumo receber cachorras no cio. Os cachorros estão doidos querendo montar nela. Preciso que você venha buscar”.

Tive pena da minha amiga. A cachorra, sugestão do ex-marido “porque cachorro faz bem pra criança”, transformou-se em herança na separação. Uma terceira filha não desejada. Uma terceira filha a quem, vejam só, não se aplicam as regras da guarda compartilhada nem qualquer regime de visitação.

Pois bem. Enquanto o ex se divertia com a nova namorada em Buenos Aires, minha amiga recorreu a “um paraíso canino”, como dizia o anúncio, para poder viajar em paz com os filhos que ela escolheu ter.

E então voltamos à estridência da senhora responsável pelo estabelecimento, emanando do telefone apoiado sobre a mesa. Minha amiga estava tensa. Não tinha notado nenhum sangramento antes do check-in de Maggie três dias antes. E agora? O que fazer? Pedir para alguma boa alma pairando no Rio resgatá-la? Afinal, “os cachorros estão todos doidos querendo montar nela” e, é evidente, é ela que precisa ser retirada de lá o quanto antes. O estabelecimento não poderá ser responsabilizado caso a cachorra engravide. Termos e condições se aplicam.

Perguntei se Maggie não poderia ficar em outro ambiente, longe dos machos, solução que me pareceu óbvia, mas não: no tal paraíso canino ficam todos juntos num único pátio, e a cachorra que pare de atiçar os caras. Fizemos sinais para que desligasse, combinando de se falarem de novo mais tarde.

Abrimos um vinho, almoçamos e esquecemos do assunto. No fim da tarde, a moça de timbre marcante entra em cena novamente. Pede desculpas. Constatou que Maggie não estava no cio: “São só os cachorros mesmo, enlouquecidos com ela. A Maggie, hein? Que danada. Vou separá-la dos taradinhos”. Minha amiga, que é da paz, achou graça e suspendeu a operação de resgate da mascote. Injuriada com a abordagem da tal senhora, lembrei da cena presenciada na infância, numa fazenda no interior de São Paulo. Uma égua imóvel, presa na cerca, patas dianteiras e traseiras amarradas, rabo levantado preso ao tronco. Soltam um cavalo inteiro e enorme. Ele parece furioso, relincha e monta na égua — que permanece imóvel — e se retira em seguida dando pinote sob aplausos dos presentes. Que pena eu senti daquela égua. Do olhar apavorado daquela égua.

Sou capaz de, em alguma medida, distinguir as dinâmicas do mundo animal das que caracterizam o comportamento humano. Ainda assim, me pergunto: após a constatação de que Maggie não estava no cio, será que passou pela cabeça da responsável pelo paraíso canino entrar em contato com os donos dos cachorros para reclamar do seu comportamento e solicitar que fossem resgatados? Me pergunto e eu mesma respondo: “Claro que não”. Cachorra ou mulher, a culpa pelo comportamento do macho é sempre nossa.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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