O buraco do coelho

Um olhar ácido sobre o mundo das redes sociais, seus exageros, personagens e distorções, onde o cotidiano assume contornos de puro absurdo
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
28/11/2025

Será que é isso? Caímos todos no buraco do coelho? Na obra clássica de Lewis Carroll, Alice cai na toca de um coelho e é transportada para um lugar surreal e mágico chamado País das Maravilhas. Lá, encontra personagens excêntricos, cresce e encolhe de tamanho várias vezes, testemunha eventos inesperados, tenta entender as regras de um mundo ilógico e se vê frustrada.

Eu trocava mensagens de áudio com uma amiga sobre assuntos diversos. Num deles, ela fez um comentário sobre uma conhecida e concluiu: “Essa caiu no buraco do coelho”. Eu e minhas amigas geniais. Fiquei com aquela ideia me rondando, revi partes do filme do Walt Disney, reli trechos do livro do Lewis Carroll e vesti, em parte, a carapuça.

Abrir o Instagram é como cair no buraco do coelho. Ceder ao seu apelo é cair no buraco do coelho. “Alimentar a rede” é cair no buraco do coelho. Acompanhar o que se passa em determinados perfis é dar de cara com personagens peculiares e testemunhar eventos inesperados. Acatar que algo como um influencer possa existir e, de fato, influenciar alguém é mergulhar de cabeça na toca do coelho e se deparar com um mundo estranho em que “lacração” e “engajamento” são metas de vida. É ser invadido pelos zilhões de mundos que se desdobram diante dos nossos olhos com apenas um toque do indicador na tela do celular. O País das Maravilhas, sem tirar nem pôr.

Ao cruzar o portal — digo, ao cair no buraco — testemunhamos eventos inusitados sem entender as regras desse universo paralelo e sem sentido. Passo os olhos pela paisagem dessa terra de ninguém e me espanto com o desprendimento das pessoas, com a exposição exacerbada, com a infinidade de imagens produzidas, com a irrelevância de grande parte dos conteúdos: look do dia, look da tarde, look da noite. Dia 1 da viagem, dia 2 da viagem, dia 3 da viagem. Foto no avião para mostrar que viaja de classe executiva, foto no restaurante para mostrar em que restaurante foi, foto da garrafa de vinho para mostrar que vinho bebe, foto no treino para exibir o corpo.

Alices, coelhos malucos e rainhas de copas exibem suas casas, closets, sua intimidade. Como acordam, o que comem, o que vestem, para que lugares viajam. O que aconteceu com os conceitos de público e privado? Pelo visto, caíram em desuso ou se amalgamaram. Só eu não fiquei sabendo. As pessoas se filmam dentro dos seus banheiros, se maquiando, tomando banho, se vestindo, comendo, comemorando, chorando. São milhares de reality shows vinte e quatro horas por dia. Dicas de cosméticos, barrinhas de proteína, calça jeans e programas. Todas imperdíveis. O negócio é consumir sem parar o que todo mundo estiver consumindo. O legal é fazer o que todo mundo está fazendo. Gostar do que todo mundo está gostando. Ter o mesmo corte e cor de cabelo, o mesmo perfume, o mesmo tênis, assistir às mesmas séries.

No País das Maravilhas há filtros embelezadores que aumentam bocas, implantam cílios, salpicam sardas e uniformizam a pele do rosto. As fotos ficaram out e agora a trend é postar vídeos. Noventa por cento começa com a frase: “Oi, gente…”. A quem se dirigem essas pessoas? A uma entidade incorpórea que atende pelo nome de seguidores. Quanto mais seguidores, mais relevante a pessoa. Fica a dica.

Ao mergulhar no buraco do coelho e circular pelo País das Maravilhas, é imprescindível opinar sobre todo e qualquer assunto. De cinema a política, de economia a decisões do STF, passando por ciência e literatura, uma enxurrada espantosa de experts generalistas nunca antes vista na história deste país apresenta pareceres sobre o tema da vez. Ai de você se não der o seu pitaco sobre os indicados ao Oscar ou sobre o que foi decidido na COP30.

O País das Maravilhas, também conhecido como reino da simplificação e da superficialidade, tem uma população formada majoritariamente por haters, grupo cada vez mais numeroso e violento que se retroalimenta e promove ataques sanguinários. Como o próprio nome antecipa, odeiam tudo e todos por princípio. Para eles, não há nuance, meio-termo ou necessidade de fundamentação. Desconhecem a acepção do termo “ponto de vista” e são desprovidos de senso crítico e objetividade. No País das Maravilhas não há vozes dissonantes. Na última vez em que uma apareceu, ficou falando sozinha.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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