Ítaca

Ítaca, Pasárgada, casa: a ilha da infância e da imaginação retorna como metáfora de fuga, desejo e reencontro na vida adulta
Ilustração: Eduardo Mussi
22/08/2025

“Quando crescer quero ser Penélope.” Em criança, respondia assim, convicta, à clássica pergunta. Ninguém me corrigia. Deviam achar bonitinho. Entendo: minha filha falava leite “colensado” e “dar” uma soneca, e eu também não corrigia. O fato é que, achando-me uma menina muito esperta, eu dizia que queria “ser Penélope” quando crescesse e, diante da reação dos adultos, esclarecia, inabalável: “Quero aprender várias línguas”. Ou seja, eu queria ser poliglota.

Ainda que a confusão entre essas duas palavras me pareça plausível para uma menina de menos de dez anos, identifiquei nessa lembrança um prato cheio para as próximas sessões de terapia. Seria apenas uma confusão inocente ou a identificação prematura com a personagem da Odisseia?

Escavei a memória e revi a cena que se repetia, noite após noite: as duas meninas ávidas, extasiadas diante da mãe, que não só contava, mas interpretava as aventuras daquelas histórias, mudando vozes e trejeitos para cada personagem. O tapete sendo tecido durante o dia e desfeito durante a noite. Àquela altura, a Grécia era pura fantasia. Um lugar fictício, habitado por deuses e heróis. Ítaca, a terra de Ulisses, uma ilha inventada.

Em parte, era isso que passava pela minha cabeça algumas semanas atrás quando, cruzando de carro a ilha de Kefalônia, logo depois de uma curva, avistamos Ítaca.

A ilha vizinha, apontada pelo amigo aficionado por mapas, surgiu à minha esquerda, logo ali, tão perto. Deixei escapar um suspiro. Foi como se as histórias da infância se descolassem da minha imaginação e ganhassem vida. Encostamos o carro num recuo da estrada para admirá-la, boiando no mar Jônico. “Avistamos Ítaca”, lembro de ter pensado, num misto de espanto e deslumbramento.

De volta ao carro, Ítaca na linha do horizonte, a menina que sonhava ganhar o mundo falando muitas línguas, fascinada pela esperteza e perseverança de Penélope e que, instintivamente, misturava tudo isso num mesmo balaio, fez sentido para mim. O azul inconcebível do mar à nossa volta me levou para a Pasárgada do Bandeira. A terra utópica para onde se deseja partir. Inatingível, inexistente, idealizada. Com os olhos alcançando o horizonte, lembrei do conto A ilha desconhecida, de Saramago: sair da ilha para ver a ilha.

E então voltei a Ítaca, que já ficara para trás. Agora, não mais à ilha real, mas ao amálgama mental Homero-Bandeira-Saramago, fruto do embalo das curvas da estrada. O lugar para onde se deseja voltar. Mesmo que leve muitos anos. O lugar para onde queremos fugir. O lugar de onde é preciso sair para, então, um dia, poder retornar. Ítaca, Pasárgada, casa: a minha ilha.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho