Errata

Um passeio num dia quente de inverno é a oportunidade para fazer uma lista de momentos em que a reação poderia ser bem diferente
Ilustração: Eduardo Mussi
11/07/2025

21 de junho. Primeiro dia de inverno. Saí para caminhar em torno das onze da manhã e quase desfaleci de calor. Me perguntei quinze vezes por que raios vesti uma legging e não um short e segui tostando sob o sol de um veranico inesperado. A cara do Rio: fazer calor, no primeiro dia de inverno. Tudo fora do lugar.

Mesmo admirada com o dia lindo, me arrependi de não ter ficado em casa lendo, escarrapachada no meu canto preferido. Não curto aquele abafamento. Nascida e criada em solo carioca, senti tanto calor ao longo da vida que só de pensar já fico indisposta. O livro estava ótimo, o café ao alcance da mão, a temperatura dentro de casa amena e ainda assim fui fisgada pelo dia de sol e céu azul estampado na janela.

Saio de casa, desço a rua, alcanço a beira da Lagoa. Caminho na direção de Ipanema. Há décadas o mesmo cenário e a gente não cansa. Na altura do Caiçaras considero ir até a praia. Acabo decidindo beber uma água de coco admirando o Corcovado.

Ao percorrer o caminho de volta para casa, esqueço do verão fora de hora deslumbrada com esse canto do Rio, mesmo já tendo feito esse percurso milhares de vezes. E é justo nesse instante, por alguma associação de ideias que não fui capaz de rastrear, que surge a ideia. A ideia de que num certo momento da vida, ali pela metade do caminho, deveria estar prevista a possibilidade de uma errata. Ampla, geral e irrestrita. Uma espécie de compilado de equívocos pretéritos a serem corrigidos.

Penso em aprimorar a lista e estou aberta a sugestões, mas me ocorreu começar por situações pouco complexas: ter um papo reto com o professor de matemática do ensino médio que disse para a turma toda que o que eu tinha era dívida e não dúvida quando fiz uma pergunta; reagir à altura aos bullyings sofridos; espantar gente ruim logo de cara e não ficar posando de fina; dizer o que penso na lata sobre todo e qualquer assunto em noventa porcento das vezes em que deixei de fazer isso; mandar a vizinha que reclamou que meus filhos pulavam na cabeça dela no início da pandemia catar coquinho e estimular as crianças, presas em casa, a pularem mais e mais e mais com toda energia vital de que fossem capazes.

Mudo o trajeto de volta. Dizem que faz bem para a cabeça sair do automático, alterar a ordem em que costumamos fazer as coisas. Desvio da ladeira e entro na rua que vai dar na escadaria que vai dar quase em frente ao meu prédio. Animada com a ideia da errata, subo os cinco lances de dez degraus cada me sentindo o Rocky Balboa até sucumbir e perder o fôlego, lá no alto. Não é vingança, é errata mesmo. Na praça, lá embaixo, a cada movimento dos meninos jogando futebol, a poeira do campo de terra batida sobe como um rodamoinho. As possibilidades de errata se multiplicam. A visão nubla. A pressão cai. Apoio uma das mãos no muro. Deve ter sido o calor.

Clarisse Escorel

É escritora, advogada e especialista em Propriedade Intelectual e Direitos Autorais. Estreou na literatura em 2023 com o livro de crônicas Depois da chuva (Ouro sobre Azul). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Rascunho